Crítica


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Sinopse

Em Memórias de um Caracol, Grace Pudel é uma garota solitária que coleciona caracóis ornamentais e tem um enorme amor pelos livros. Ainda muito jovem, Grace foi separada do irmão gêmeo, o pirofagista Gilbert, e a partir daí, entrou em uma espiral contínua de ansiedade e angústia. Apesar dessas inúmeras dificuldades, a menina volta a encontrar inspiração e esperança quando inicia uma amizade duradoura com uma idosa excêntrica chamada Pinky. Premiado na 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (2024).

Crítica

Em 2009 o cineasta australiano Adam Elliot comoveu plateias mundo afora com uma animação em claymation – técnica de stop-motion feita a partir de massa de modelar, barro ou material semelhante. Mary e Max: Uma Amizade Diferente (2009) era sobre duas pessoas absolutamente solitárias com vidas miseráveis se correspondendo à distância. Uma garotinha australiana de oito anos de idade criando vínculos fortes com um não menos isolado homem norte-americano de 44 anos. Portanto, havia duas perspectivas distintas da introspecção que, uma vez combinadas, ofereciam um painel comovente a respeito do isolamento humano e da tristeza. Voltando aos longas-metragens após 15 anos, Elliot foi indicado ao Oscar 2025 com Memórias de um Caracol, produção que segue os mesmos preceitos visuais de sua mais famosa empreitada anterior, semelhante em interesse e abordagem. Grace (voz de Sarah Snook) é uma mulher contando sua trágica história ao caracol que acabou de ser libertado de um pote de vidro. Como o animalzinho progride de maneira lenta é possível destrinchar toda uma existência de contratempos e melancolia enquanto ele percorre míseros centímetros. Então, o que vemos é fruto do relato pesaroso de alguém levada a passar a própria vida a limpo. A começar pela gestação ao lado do gêmeo Gilbert (voz de Kodi Smit-McPhee), o seu grande amigo, confidente e parceiro de jornada.

Memórias de um Caracol é, assim como Mary e Max: Uma Amizade Diferente, impressionante e lindo do ponto de vista visual. O seu mundo repleto de detalhes está entre a realismo e o expressionismo, uma vez que cada traço ou objeto de cena contém pequenas distorções de linhas e formas que exteriorizam os sentimentos da protagonista. Assim como faziam os pioneiros do Expressionismo Alemão, Adam Elliot transfere à cenografia a tarefa de nos imergir num contexto sombrio representativo da paisagem interna das pessoas. Desse modo, o design dos personagens e dos cenários exata imediatamente a melancolia que será uma espécie de mediadora da sofrida vida de Grace. Nascida prematura com um lábio leporino, ela ainda perde a mãe antes de engatinhar, convive com um pai paraplégico, é apresentada à nocividade do alcoolismo precocemente e, o seu grande estigma, precisa lidar com todos os sentimentos decorrentes da separação da única pessoa que parece compreender a sua estranha fixação por caracóis. O que temos nesse longa-animado é uma sucessão implacável de desgraças e revezes, como se o realizador estivesse colocando a protagonista à prova para ver até onde ela aguenta antes de tomar atitudes drásticas para interromper sua sina torturante de angústias e derrotas. O acúmulo de obstáculos é tamanho que chega a asfixiar o filme, a torná-lo dependente da dor.

Recorrendo novamente à comparação com Mary e Max: Uma Amizade Diferente. No filme anterior, Adam Elliot também fazia do cotidiano dos personagens uma prova de resistência por conta das sucessivas demonstrações de indiferença do entorno sombrio. A ideia era apresentar uma realidade de tendência negativa, mas no fim das contas compensada por excepcionais fugas permitidas pela bondade de pessoas incríveis. Havia um equilíbrio mais sensível entre o mundo-cão e as promessas de felicidade desses raios de sol ocasionais. Em Memórias de um Caracol a sequência de desgraças relatadas por Grace para o seu caracol “em fuga” é feita de tal maneira implacável que vicia a narrativa e a faz depender da continuidade das intermináveis torturas impostas à protagonista. Portanto, temos um filme sensível e bonito sobre a capacidade de alguém de resistir até as provações mais terríveis – com destaque ao apoio que Grace recebe de pessoas como a arrojada Pinky (voz de Jacki Weaver) –, mas para isso passa um pouco do ponto ao precisar transformar cada nova possibilidade de conforto numa armadilha para gerar mais sofrimento. Chega um momento em que somos automaticamente levados a assumir posturas cínicas diante das novidades, pois, a julgar pelo andar da carruagem, elas vão se transformar em algo ruim. Logo, quando um homem bom surge no caminho de Grace, convém suspeitar dele.

Não adianta o quanto seja falado sobre isto, muitos ainda consideram animação um suporte apropriado para histórias infantis. Mesmo que não tenha “inventado a roda”, Adam Elliot surpreendeu muita gente com Mary e Max: Uma Amizade Diferente, sobretudo pela excelência da história animada cravejada de assuntos e abordagens adultas. Imaginem alguém fazer um stop-motion sobre depressão, isolamento e tristeza, com isso iluminando personagens que somente podem ser considerados heróis se isso significar sobreviver apesar de tudo. E Memórias de um Caracol está mantida essa pegada adulta, vide as alusões a swing, práticas sexuais, perda de virgindade e fanatismo religioso como estratégia para encobrir hipocrisias – um dos subtemas mais bem encarados pelo filme nessa missão de denunciar inúmeros focos de sofrimento. No entanto, o acúmulo exagerado de desgostos e dissabores de Grace quase faz do filme um insistente formulador de obstáculos que aumentam a nuvem espessa pairando sob a cabeça de uma menina nascida em meio ao trauma familiar que não parou de seguir crescendo. Cada respiro de Grace é sufocado por uma nova desgraça, da parada respiratória que faz dela órfã, passando pela distância de um ente querido ao envolvimento com um fetichista que parecia ser o seu bote salva-vidas afetivo. É como se o filme estivesse tão apegado à desgraça que não conseguisse reproduzir com a mesma intensidade emocional os tão raros instantes de felicidade.

Filme visto durante a 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2024

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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