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O luto e a culpa são os fantasmas que assombram Harper (Jessie Buckley). Conviver com ambos os sentimentos é uma tarefa árdua, tendo em vista as ferramentas racionais/emocionais dessa vítima dos abusos masculinos que resultaram em tragédia. Os flashbacks mostram que a necessidade de repousar afastada numa casa de campo vem do fato de ela ter testemunhado o namorado cometer suicídio (ou ter caído em meio a uma briga deles, isso não fica muito bem definido). Há nesse passado relativamente recente algo de agressão de gênero, pois o homem não aceita a separação e, além de ofender a mulher fisicamente, ainda ameaça matar-se para ela carregar um fardo por toda a vida. A resposta do homem é agressiva e mesquinha. O que faz um sujeito pensar em atentar contra própria vida para punir à ex que determina o rompimento do namoro? Infelizmente, são comuns os casos de feminicídio. E a maioria deles ocorre exatamente por conta de homens inconformados com o término de relacionamentos. Portanto, o ímpeto punitivo de James (Paapa Essiedu) pode ser perfeitamente lido como agressão de gênero, algo que perpassa a fantasia que o aparelho psíquico de Harper utiliza para lidar com a culpa e o luto residuais. O cineasta britânico Alex Garland faz com a misoginia em Men: Faces do Medo algo semelhante ao que Jordan Peele faz (melhor) com o racismo em seus filmes.
Por tradição, o horror é um gênero fartamente utilizado, não apenas para gerar apreensão momentânea, mas também a fim de construir alegorias sobre certos medos individuais e coletivos. A Noite dos Mortos Vivos (1968), por exemplo, recorre aos zumbis para forjar a metáfora sobre o puritanismo agressivo da América racista e machista então questionada pela contracultura dos anos 1960/70. E, ao longo dos anos, o cinema de horror se ocupou de levar monstros reais às telonas por meio de criaturas sobrenaturais ou algo que as valha. Retomando o paralelo com o cinema de Jordan Peele. Este cineasta norte-americano lança mão do horror para colocar em pauta o racismo, especialmente em filmes como Corra! (2018) e Nós (2019), nos quais a branquitude agressiva chega a um paroxismo. Também agora alinhado com as demandas identitárias do nosso tempo, Alex Garland utiliza o horror para falar do machismo e da misoginia. Harper é a mulher sozinha no campo que, desde a “entrevista” informal do senhorio, se depara com uma concepção excessivamente masculina de sociedade. Os questionamentos sobre estado civil, o acolhimento quase oposto entre os policiais homem e mulher à sua reclamação, a forma como a solidão se torna angustiante pelo fato de ela estar cercada de homens, tudo isso desenha a noção de violência de gênero costurada com as linhas e as agulhas do horror.
Claro, existe uma diferença crassa entre Jordan Peele e Alex Garland quanto, respectivamente, a abordagem do racismo e a do machismo por meio do horror: enquanto o primeiro é um realizador negro, o segundo é um cineasta homem. E, provavelmente, disso decorra os pequenos excessos do desenho desse feminino compreendido ontologicamente como “perigoso” num entorno em que os homens literalmente têm o mesmo rosto. Aliás, é boa a sacada de colocar todos os espécimes masculinos do filme (menos o ex-namorado) com o semblante do grande ator Rory Kinnear, ainda que essa sacada não resista ao tempo. O que isso significa? Que o fato de os homens terem a mesma cara é apenas efetivo como dispositivo para entendermos o descolamento da protagonista da realidade – uma vez que Harper não denuncia essa igualdade física. Fora isso, existe aí uma simbologia um tanto evidente e superficial demais sobre a semelhança fundamental entre potenciais agressores e como isso é digerido pelas vítimas. No entanto, é algo não muito bem elaborado por Garland ao longo da trama. Então, o que resta entre a falta de variações e a metáfora óbvia é o simples estranhamento de enxergarmos em cena sempre uma fisionomia como representante do masculino. E a sucessão bizarra de nascimentos que prepara o fim do filme corrobora essa leitura de uma imagem simplória dos “homens iguais”.
Men: Faces do Medo é um filme de atmosfera, no qual convém duvidar de todas as imagens como representações do concreto, pois elas provavelmente são fruto do luto e da culpa sendo elaborados pela aparelhagem psíquica de Harper. Alex Garland sabe criar um clima de apreensão ao colocar a protagonista num ambiente cada vez mais hostil à sua existência. Antes mesmo de apelar ao grotesco para anunciar a exacerbação das alucinações que transformam o idílio numa jornada de abominações, o cineasta britânico constrói um percurso analítico mais ou menos óbvio para mostrar os medos de Harper diante do masculino. O padre representa as amarras do dogma religioso; os homens no bar são a ameaça à mulher em qualquer ambiente público; o senhorio é a presença que resvala na passivo-agressividade dos supostamente mansos; o menino provavelmente é o representante de um machismo precoce; o policial é a ambiguidade da lei que não protege as mulheres; e a criatura pode ser entendida como personificação direta da monstruosidade desse masculino brutal e constante na vida de Harper. Mas, para essas figuras serem efetivas como indícios, o filme precisaria mergulhar um pouco mais (e melhor) no âmago individual da personagem vivida com muita entrega por Jessie Buckley e revelá-la de modo complexo, indo além do peso dos resquícios do trauma. Talvez o que falte realmente ao diretor são as essenciais nuances de uma sensibilidade feminina para ampliar o percurso tenso e relativamente imersivo em coisas universais, tais como os signos religiosos e machismo intoxicante.
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Excelente análise e pontos sobre o desenvolvimento do filme, e principalmente a crítica em cima da produção do diretor do filme na história. Queria debater sobre o filme com alguém, e senti como tendo uma conversa com alguém sobre. Muito bom, hehe