Crítica


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Sinopse

Markus, um bonito, adorável e respeitável arquiteto, é pedófilo. Ele se sente atraído por jovens garotos, mas sofre por causa dessa preferência. Markus se tortura e tem nojo de si mesmo, mas, ainda assim, acha que não conseguirá manter esse desejo sob controle por muito tempo. Passa, então, a se isolar cada vez mais, lutando para resistir aos chamados de sua cabeça.

Crítica

Markus (Max Riemelt) é pedófilo. Não sabemos muito do relacionamento dele com a família, nem de seu desempenho no escritório de arquitetura. Desconhecemos seus gostos, passatempos, amigos próximos, desejos para o futuro. A única informação que o filme julga interessante a respeito deste homem é seu desejo sexual por crianças, apesar do controle constante para não abusar de nenhuma delas. Na primeira cena, Markus se masturba. Depois, observa crianças num parque, e chora sozinho. Depois, admira crianças numa piscina e se masturba de novo. Em seguida, mais crianças, mais masturbação. A noção de psicologia de personagem é limitada ao desejo sexual e à culpa – não existem momentos de fantasia, escapismo, euforia, gozo, manipulação de si e dos outros.

Deste modo, nosso protagonista, detentor do ponto de vista, é reduzido a um sintoma ambulante, uma compulsão personificada. O diretor Savas Ceviz aborda um tema de grande complexidade psicológica e social por um viés desprovido de nuances. As imagens se interessam apenas pela tentação, aproximando o jovem arquiteto do máximo de crianças possível. Uma vizinha que acaba de conhecer Markus lhe entrega o garoto de poucos anos de idade para cuidar e colocar na cama, enquanto ela vai à discoteca com os amigos. O garoto logo pede para dormir no colo dele, e depois insiste em tomar banho com o protagonista. Em outro momento, o sobrinho de Markus brinca com seus bonecos em posição “de quatro” no chão da sala, para o delírio sexual do pedófilo.

Existe um problema ético essencial em abordar a vida do pedófilo sem qualquer forma de distanciamento em relação ao olhar dele. Os diversos planos subjetivos implicam colocar o espectador na posição de cúmplice, oferecendo o close-up do abraço apertado em garotinhos, além de planos próximos do torso de meninos impúberes sendo ensaboados sob o banho. Ao invés de um questionamento humanista diante de Markus (Ele vai se livrar da compulsão? Conseguirá ser feliz apesar dela?), o único conflito que o filme alimenta, cena após cena, é saber se ele sucumbirá à tentação de abusar sexualmente do filho da vizinha, que cria sucessivas oportunidades de intimidade com esta figura paterna. As repetidas insinuações de que “agora sim, vai acontecer” fazem com que o espectador esteja sempre à espera do crime, à espera do abuso. Existe uma fetichização inaceitável da pedofilia neste retrato nada sutil do tema.

Além disso, Ceviz efetua um uso risível de simbologias, umas mais óbvias que as outras. Para demonstrar que Markus não obteve ajuda do mundo exterior quando confessou seus desejos, o roteiro cria uma cena absurda dentro de um consultório médico. Para representar a inocência infantil, mostra pipas voando livremente pelos ares. Para demonstrar o instinto predatório do adulto pedófilo, explora nada menos que seis vezes a imagem de um cão/lobo preso atrás das grades. O animal fica cada vez mais agressivo, e prestes a escapar... como o protagonista, é claro. Quando Markus folheia uma revista, o primeiro anúncio encontrado diz “Você gosta de crianças mais do que deveria? Procure por nós!”, em outra coincidência improvável. A direção, o roteiro e os personagens demonstram uma falta de tato que beira a comédia involuntária, dentro de um filme de uma seriedade sepulcral.

Diante deste panorama, resta pouco a Max Riemelt e outros bons atores, como Luise Heyer, para fazerem em cena. O ator não fornece grande variação emocional porque o roteiro não o permite. Ora, a decisão de dissociar a imagem do pedófilo daquela do monstro é bastante louvável – afinal, se o homem não passar ao ato, qual é o problema social de seus desejos íntimos? Outros filmes como Michael (2011) e O Lenhador (2004) enveredaram por este caminho ambíguo, questionando a responsabilidade destas figuras perante a sociedade, analisando o nosso direito a julgá-los pessoalmente por manifestações que só existem em pensamento. Infelizmente, Mente Perversa não trata da pedofilia enquanto fenômeno, apenas o caso de um pedófilo específico, atiçando-o (e ao espectador, por consequência) para ver até que ponto aguentará antes de “finalmente” atacar alguma criança.

Transformar esta expectativa em ferramenta de suspense (existe trilha sonora de tensão quando Markus persegue um garotinho num parque escuro), e portanto em elemento de retenção do público, destrói qualquer empatia que se poderia ter pelo protagonista, e pelo filme como um todo. A única solução encontrada para o problema é de ordem moral, fazendo com o conflito exploda – ou seja, Markus precisa atacar uma criança, ou ser tirado de circulação. A necessidade de encontrar vítimas, em viés fatalista e martirizante, termina por despir o projeto de qualquer complexidade. Ceviz reduz seu filme a uma sessão voyeurista da tortura alheia – a tortura de Markus diante dos garotos, e a do público de um homem prestes a estuprar uma criança a cada instante, durante cem minutos de duração.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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