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Crítica
Reconhecido como um dos nomes mais importantes da história da música africana, e também por sua luta como ativista social e político, o nigeriano Fela Kuti (1938 – 1997) ganha em Meu Amigo Fela, do diretor brasileiro Joel Zito Araújo, um retrato afetuoso e vívido construído a partir do olhar do escritor cubano Carlos Moore, amigo de longa data e autor da biografia oficial do músico pioneiro do movimento afrobeat. Alçado desde o princípio à função de guia narrativo, com a câmera o acompanhando pelas ruas de Lagos, Nigéria, enquanto relembra seu primeiro contato com Fela – e depois também em viagens pelos Estados Unidos e França –, Carlos assume ainda o papel de entrevistador, se encontrando com outros personagens importantes na trajetória do biografado para bate-papos íntimos e despojados.
Adotando essa estrutura, Joel Zito imprime uma dinâmica agradavelmente fluida ao documentário que, inicialmente, se afasta da história de Fela para focar na de Carlos, recontando sua chegada aos EUA na década de 1960 e o engajamento na luta pelos direitos da população afro-americana, que levou ao contato direto figuras emblemáticas, como Maya Angelou e Malcolm X. Tal desvio serve para que se estabeleça o contexto histórico/cultural e a atmosfera na qual Fela viria a se inserir nos anos de 1970, quando, de fato, sua música ganhou um forte direcionamento sociopolítico, passando a transmitir sua visão sobre questões raciais e a defesa dos conceitos do Pan-Africanismo. Peça-chave nessa conscientização política e artística, a cantora e ativista, integrante do Panteras Negras, Sandra Izsadore, ganha destaque entre os entrevistados. Carismática e passional, ela partilha as memórias de seu relacionamento musical e amoroso com Fela, em um diálogo bastante aberto com o amigo Carlos.
Esse tom naturalista domina a maior parte dos encontros, ainda que por vezes Moore determine de modo mais intrusivo os rumos das conversas. Num primeiro momento, inclusive, tal direcionamento do olhar resulta num filtro, numa idealização de imagem, que acaba indo na contramão da desmistificação da figura de Fela a qual o longa parece se propor. Contudo, mesmo que a percepção de terceiros prevaleça, com Joel Zito dando pouca voz ao próprio músico – surgindo apenas em alguns fragmentos de entrevistas – o longa nunca deixa de tentar expor sua faceta humana, para além do ícone. Isso inclui tratar de tópicos controversos, como sua relação com as mulheres – Fela era adepto da poligamia e chegou a ter vinte e sete esposas – ou ainda o comportamento questionável adotado em determinado momento de sua vida, por influência de um guru espiritual, Professor Hindu, marcado pela violência contra aqueles que faziam parte de seu círculo de convivência.
A contradição contida nessa postura sombria é vista por Carlos como um possível reflexo da repressão impostas ao músico pelo governo militar nigeriano, que o enxergava como um agitador e inimigo potencial, e que resultou em episódios traumáticos, como o ataque à sua comunidade, a República Kalakuta, ocorrido em 1977. Além de ser espancado e ter sua casa incendiada, Fela viu seus entes queridos serem massacrados, incluindo a própria mãe, Funmilayo Ransome-Kuti – pioneira na militância feminista e anticolonialista no continente africano – que foi atirada pela janela, vindo a falecer pouco após o ocorrido. Um fato do qual Fela nunca teria se recuperado plenamente, já que, como todos parecem afirmar, os laços com Funmilayo extrapolavam a esfera materna, com esta servindo de principal modelo e inspiração para os posicionamentos do filho.
Ao expor todos esses fatos, Meu Amigo Fela deixa transparecer a complexidade de seu protagonista, tornando facilmente compreensível o fascínio por ele exercido. Talvez o trabalho de Joel Zito só deixe de resultar ainda mais contundente por não se aprofundar totalmente na arte de Fela, como em seu processo criativo, por exemplo. Exceção feita a alguns trechos do depoimento do músico Ray Lema, pouco é discutido sobre as características do afrobeat, sua influência etc. O cineasta parece mesmo crer que a música de Fela fala por si, apostando no magnetismo das imagens de suas apresentações ao vivo ou no impacto da mensagem contida nas letras de suas canções, reveladas nos lyric videos plasticamente marcantes concebidos sobre as ilustrações das capas de seus discos. Uma aposta que, no fim, surte o efeito desejado de elevar o legado de Fela ao de nomes como os dos já citados Malcolm X e Maya Angelou, ou ainda de Martin Luther King e outras personalidades da cultura negra homenageadas na colagem de cartelas biográficas que antecede os créditos finais.
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