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Sinopse

Maria da Graça, uma menina tímida, saiu da Bahia e foi encontrar os amigos que estavam morando em São Paulo e, depois, no Rio de Janeiro. Desde muito cedo ela sabia de uma coisa: que a música iria guiar seus caminhos. Com pouco mais de 20 anos, se encontrará no meio do furacão do surgimento do Tropicalismo e da opressão promovida pela Ditadura Militar durante os anos 1960, ao mesmo tempo em que irá se transformar na eterna Gal Costa.

Crítica

Quem foi, quem é, e talvez ainda mais importante, quem será Gal Costa? Essas são questões que poucos ousariam responder – muito provavelmente, nem mesmo a própria. Sabiamente, as diretoras Lô Politi e Dandara Ferreira evitam tais armadilhas, concentrando-se apenas numa amostra que, de forma significativa, possa representar o todo. E assim, fazem de Meu Nome é Gal uma obra de força insuspeita, diferenciando-se sem muito esforço do oceano de cinebiografias musicais que tem desaguado nas telas nacionais nos últimos anos. Ao deixar de lado a tentação de abraçar uma trajetória tão rica e múltipla, que sob qualquer aspecto se mostraria insuficiente de se comportar dentro de um longa de cerca de 120 minutos, miram seus olhares em um momento específico dessa jornada, período esse que talvez nem fale tanto da música ou das parcerias que a cantora desenvolveu ao longo de sua consagrada carreira, mas que é mais do que propício para desenhar sua personalidade e caráter. Assim, ao invés de martelarem conceitos óbvios e se darem por satisfeitas revisitando passagens icônicas (que até estão presentes, mas mais como ilustração e menos como alicerce), extrapolam os limites de um retrato linear, se aventurando por complexidades e debates que vão além da mera admiração.

Os acertos começam com a escolha de Sophie Charlotte para viver a protagonista. Atriz de trajetória tímida no cinema (seus melhores personagens, ao menos até então, tinham vindo pela televisão), ela tem aqui sua maior oportunidade na tela grande. A Gal Costa que ela empresta se posiciona antes da estrela maior que fãs e curiosos guardam na lembrança. Tanto é que, ao ser apresentada ao público, quem se mostra pela primeira vez é Maria da Graça, a menina vinda da Bahia rumo ao encontro de velhos amigos que estavam morando no eixo Rio-São Paulo e que, como ela, sonhavam em viver como artistas. Tudo o que a garota deslumbrada com a cidade grande queria era cantar e mostrar seu talento. Nada muito além disso. Se nesse meio tempo sobrasse espaço para boas festas, alguns beijos e momentos de paixão e de descontração, sem cobranças ou discussões, já estaria perfeito. Mas o passar dos anos não demonstra piedade com ninguém, atropelando qualquer um que se coloque no seu caminho. Como ela, que diante de todas as transformações que a todo instante aconteciam ao seu redor, se vê obrigada a tomar uma posição. Nada da noite para o dia, mas um processo gradual, que surge de forma discreta, até se impor como condição de sobrevivência.

Há algumas forças próximas que a impedem de se acomodar, forçando-a a partir para a ação. Talvez a mais presente, ao menos nesse retrato, seja Caetano Veloso (vivido com energia pelo estreante Rodrigo Lelis), que está ao seu lado tanto para saudá-la como cantora, como também para provocá-la enquanto personalidade pública. É ele que aos poucos irá motivá-la a uma tomada de consciência política e social. Guilherme (Luís Lobianco, roubando as atenções a cada aparição), o empresário, é o tipo que nunca se permite se revelar por completo. Ele tanto entende os temores que a seguram, como também reconhece a necessidade de empurrá-la adiante quando necessário. É também o responsável pela sua maior mudança: abandonar de vez a Maria da Graça e abraçar por completo a Gal que se impôs como força criativa. Gilberto Gil (Dan Ferreira, de A Porta ao Lado, 2022), Maria Bethânia (a co-diretora Dandara Ferreira), a amiga Dedé (Camila Márdila) e até a mãe, Mariah Costa (Chica Carelli, irmã do cineasta Vincent Carelli), também terão importância nessa caminhada, alguns como apoio, outros de forma mais incisiva, mas cada um deixando sua marca, de um jeito ou de outro, e colaborando na construção desse mosaico que foi Gal Costa.

As inspirações para canções emblemáticas, como Baby ou Vapor Barato, a participação nos festivais com a profética Divino, Maravilhoso, o batismo nas ‘dunas de Gal’ ou a apresentação histórica do show Fa-Tal, no teatro Tereza Raquel, no Rio de Janeiro, quando bateu de frente com a polícia repressora da Ditadura Militar, estão todos presentes. No entanto, não se forma impositiva, como se definidores de sua persona – são quase notas de rodapé, necessárias, explicativas, mas acréscimos, curiosidades, e não mais do que isso. O que interessa é esse mundo a se desdobrar frente a uma mulher instigada por todas essas possibilidades, mas também estará em foco a miríade de cruzamentos e interseções a se debaterem no seu interior, num constante duelo entre o ir e o ficar, entre o se esconder por trás de uma voz superlativa ou o se mostrar acima de todo esse potencial, usando-o como instrumento para ampliar seu discurso, assumindo posições e resgatando verdades. Os olhos de Sophie Charlotte, geralmente num meio termo entre a alegria e a timidez, compõem um retrato que alcança tanto sem se perder com distrações ou atalhos que não levam a lugar algum.

Lô Politi tem desenvolvido uma carreira irregular enquanto realizadora, já tendo desenvolvido um projeto em conjunto (Alvorada, 2021, ao lado de Anna Muylaert) que se demonstrou aquém do potencial anunciado. Portanto, essa nova união despertara sentimentos controversos. Dandara Ferreira, por sua vez, é estreante no formato, mas traz como bagagem a minissérie documental O Nome Dela é Gal (2017) – o que evidencia sua afinidade com o tema e a homenageada. É provável que tenha sido esse seu envolvimento anterior que a tenha permitido gerar o distanciamento necessário nessa segunda – e ficcional – abordagem. As duas juntas fazem de Meu Nome é Gal uma busca pelo essencial, indo atrás do mínimo para colocar em evidência uma artista que poderia desconfiar do seu alcance e relevância, ainda mais em tempos tão conturbados (o fim dos anos 1960 e início dos 1970), mas que em momento algum duvidou do talento que carregava consigo. É essa certeza, que diferencia os que apenas tentam daqueles que de fato alcançam, que eleva o conjunto de esforço simpático a uma figura histórica a uma condição mais densa e perene. Mais do que um filme sobre a cantora, esse é sobre a arte o poder desta em uma sociedade carente por se fazer ouvir.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.

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