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Sinopse

Claudia cresceu isolada do restante do mundo. Aos 16 anos, ela tem essa rotina estranha quebrada pela aparição de uma menina de sua idade no jardim. As duas se apaixonam, mas forças operam para que elas não fiquem juntas.

Crítica

É difícil saber de qual planeta vieram Claudia (Markella Kavenagh) e Grace (Maiah Stewardson). A primeira tem 16 anos e jamais saiu do terreno de sua casa. A mãe lhe contou que os seres humanos são cruéis, portanto a melhor atitude seria permanecer eternamente dentro do imóvel. A jovem consentiu, sem demonstrar curiosidade ou rebeldia durante o crescimento – razão pela qual o resto do mundo sequer sabe de sua existência. Agora, tendo perdido a mãe/carcereira, desconhece as regras sociais, ignora a possibilidade de beijar e de fazer sexo. Claudia tem medo de tudo. Frágil e chorosa, assemelha-se a um animal assustado. Já Grace, de mesma idade, veste-se com cores rosa-claras, passeia com um tutu esvoaçante preso à cintura, os cabelos presos em rabos altos, além de colares de balas e anéis-pirulito. Ela carrega uma mochila de plástico nas costas, embora não esteja indo à escola, nem voltando dela. A dupla representa um afastamento do realismo e da contemporaneidade. A diretora Katie Found abandona a opressão dos espaços urbanos e o preconceito das comunidades rurais para privilegiar o idílio onde as duas “boas selvagens” podem expressar sua ternura em meio à natureza. Existe evidente nostalgia, mas também uma idealização da juventude.

Esta abordagem seria perfeita para uma fábula, capaz de assumir o caráter absurdo dos comportamentos. O conceito de uma adolescência privada de contato social foi bem explorado no perverso Dente Canino (2009), por exemplo. No entanto, a cineasta sustenta um estranho senso de realismo, caso em que o estranhamento na construção dos personagens não contamina a narrativa, nem se traduz numa estética arrojada. As heroínas constituem figuras de exceção face a uma paisagem cinzenta e monótona. Claudia precisa cuidar de si mesma, sem ajuda de familiares; já Grace passa os dias fora de casa, perambulando sem rumo. O roteiro logo reúne as duas, dedicando a quase integralidade das cenas às tardes passando brilho nos lábios, colando cartazes de celebridades na parede e fazendo colares de contas coloridas. De onde a jovem órfã tira dinheiro para se sustentar? Ela cozinha? Como pôde permanecer oculta à vizinhança, tendo ocupado aquela casa durante anos? Em paralelo, de onde Grace tira referências para seu universo multicolorido? De que maneira a mãe ríspida se relaciona com ela? Como reagem os colegas da escola? Nenhum destes elementos fundamentais possui uma resposta. Found cria um parêntese, uma bolha onde as meninas possuem apenas uma à outra, mergulhadas num ócio sensual.

O teor letárgico se encontra com os lugares-comuns da delicadeza feminina: as câmeras lentas, a trilha sonora indie-folk, a narração sussurrada, a leitura vaporosa de poemas filosóficos, as conversas em tom menor, as belas flores, copas de árvore, por do sol, reflexos no lago. O romance encontra no aspecto bucólico a representação eficiente, mas pouco criativa, da pureza e da ingenuidade. Nesta casa isolada, recria um Jardim do Éden em versão lésbica, onde Eva e Eva precisam resistir às tentações externas. Devido à atuação introspectiva, quase selvagem das atrizes (sobretudo Markella Kavenagh, espécie de Kaspar Hauser atualizado), o romance entre garotas adquire a impressão de uma traquinagem de crianças que roubam o estojo de maquiagem da mãe e brincam de ser adultas. A dupla manifesta curiosidade e afeto, porém passa longe de demonstrações de desejo e gozo. A única masturbação da adolescente reclusa, num gesto descomprometido, funciona para driblar o tédio, ao invés de se converter numa manifestação de pulsão de vida. Neste longa-metragem, a sexualidade se torna um faz de conta.

Visto pelo prisma do Cinema LGBTQIA+, Meu Primeiro Verão (2020) resulta numa incursão pouco empolgante, talvez contraproducente, no amor entre meninas. Falta convicção, tanto na direção quanto nas personagens, em afirmar a sexualidade como parte do amadurecimento. O fato de serem animalescas e desprovidas de traquejo social (A Lagoa Azul, 1980, vem à mente) em nada contribui à imagem da homoafetividade enquanto ato consciente, orgulhoso e natural. Pelo contrário, o afeto entre as heroínas se justifica pela inadequação de ambas, por sua estranheza e incapacidade de se relacionarem com os demais. Embora a maioria dos diretores do cinema LGBTQIA+ oponha o realismo destes elos ao contexto absurdo (de preconceito, perseguição e dogmatismo religioso), Found enxerga nestas australianas lésbicas duas figuras improváveis dentro de um terreno comum. São elas que destoam do ambiente e rompem com a normalidade – não para se orgulharem de sua orientação distinta, apenas para serem ridicularizadas pelos coadjuvantes e pelo próprio filme. É difícil levar a sério os figurinos e penteados aproximando perigosamente as protagonistas do fetiche masculino da “novinha”, hipersexualizada e de aparência infantil.

Ao final, o romance consegue atingir o aspecto cor-de-rosa desejado. Em contrapartida, faltam conflitos e desenvolvimento psicológico capazes de inserir as protagonistas num ambiente verossímil, por mais mágico que seja. Seria necessário compreender de que maneira Grace se comunica com o vilarejo, e quais sentimentos atravessam Claudia em sua experiência de clausura, para provocar identificação com o espectador, além de um discurso decorrente desta fábula. O conformismo diante da Síndrome de Estocolmo da garota órfã, e do abuso doméstico por parte do padrasto, desperta a impressão de que Found minimiza a importância do contexto social. Claudia e Grace passam os dias deitadas, sem obrigações, atividades marcantes nem objetivos para o futuro. Elas representam uma juventude em estado de torpor, incompatível com o luto brutal de uma e a violência sofrida pela outra. A homossexualidade constitui mero escapismo, um passatempo às jovens que preferem ser “estranhas” juntas ao invés de isoladas. A fantasia e os cenários lúdicos sempre foram pertinentes à representação da marginalidade (vide Vento Seco, 2020, e Plano Controle, 2018, para citar alguns exemplos brasileiros), no entanto, atingem seu potencial quando postos em contraponto com o real. O drama australiano romantiza a alteridade ao limite da caricatura, recusando-se a abrir mão deste sonho girly e teen em nome de uma reflexão mais ampla.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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