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Crítica


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Sinopse

Em 1995, a homossexualidade tinha deixado de ser crime na Irlanda há apenas dois anos, e o preconceito ainda dominava as cidades mais conservadoras. Eddie, um garoto gay, e Amber, uma garota lésbica, estão cansados do bullying sofrido na escola, e decidem fingir que estão namorando um ao outro até o fim do Ensino Médio. No entanto, será difícil manter a farsa durante muito tempo.

Crítica

Um dos aspectos mais interessantes desta comédia diz respeito ao retrato das pressões heteronormativas atingindo a sociedade inteira. Garotos heterossexuais se veem obrigados a perderem a virgindade logo, a saírem com diversas meninas, a gostarem de armas e de esportes; já as garotas são cobradas pela delicadeza e a virgindade (mas se elas devem permanecer virgens, então os garotos heterossexuais vão fazer sexo com quem?). Como diria a commedia all’italiana, “O dever do homem é tentar, e o da mulher, recusar”. Meus Encontros com Amber (2020) enxerga o caráter absurdo e artificial destas configurações, exagerando-as para fins humorísticos. Representando a virilidade padrão, o pai de Eddie ocupa um cargo no exército, e insiste que o filho o acompanhe nas lições de sobrevivência na selva. Quando vai encontrar os pais do namorado, a menina se veste com roupas floridas, de aspecto infantil, além de um grande laço na cabeça. O travestismo, no sentido original do termo, se encontra em todos estes personagens fantasiados segundo uma ideia compartilhada de sexualidade e gênero, mesmo que se sintam desconfortáveis dentro das roupas. Você é adolescente e conseguiu beijar uma garota? Ótimo. Mas pegou nos peitos dela? E se pegou, colocou a mão entre as pernas? Por que ainda não dedou a menina? A pressão continua.

No caso, o roteiro se concentra na violência mais intensa aplicada a Eddie (Fionn O’Shea), um garoto gay, e Amber (Lola Petticrew), uma garota lésbica. Os colegas os maltratam; as freiras afirmam que qualquer contato entre pessoas do mesmo sexo é pecado; os pais pressionam pelo jantar com um(a) namorado(a) do sexo oposto. As barreiras entre o público e o privado se apagam: os jovens são socialmente pressionados a confirmarem sua heterossexualidade à vista de todos. O aspecto mais brutal deste dispositivo, no entanto, se encontra na homofobia reprimida. Eddie, em especial, tenta de todas as maneiras se convencer de que esta é apenas uma fase, uma curiosidade, mas vai passar. Afinal, ser gay implicaria ser uma pessoa horrível, traidora, uma vergonha para a família e uma aberração social. Eddie, e em menor medida, Amber, são levados a odiarem a si próprios. Nos anos 1990, o cinema adolescente LGBT apostava na emancipação pelo amor romântico, produzindo ótimos filmes, a exemplo de Delicada Atração (1996). No entanto, as pautas do século XXI são outras: não basta encontrar um interesse afetivo para os problemas desaparecerem e a felicidade dos protagonistas estar garantida. Eles precisam aprender a se impor dentro de uma sociedade contrária à sua existência. Por isso, nem Amber nem Eddie se apaixona perdidamente ao longo desta jornada – o dilema diz respeito à autoaceitação.

O projeto esconde uma interessante sofisticação por trás da aparência descontraída. Meus Encontros com Amber (2020) faz uso eficaz das elipses, ou seja, as passagens do tempo. Em concisos 90 minutos, encontra oportunidade para desenvolver a personalidade dos protagonistas e de pelo menos meia dúzia de coadjuvantes, permitindo que Eddie e Amber se tornem bons amigos, finjam um relacionamento heterossexual para agradar aos pais e colegas, e depois sejam testados de inúmeras formas quanto aos limites desta farsa. A montagem, ágil sem ser apressada demais, oferece sequências dinâmicas de aproximação e separação entre a dupla central, além de apostar na repetição cômica de cenas e espaços (a pedra jogada no menino, os beijos atrapalhados diante da “parede gay” da escola, o trailer usado de motel pelos adolescentes). Embora as ações girem em torno dos dois estudantes, percebe-se que os pais e amigos possuem uma vida autônoma. Os diálogos sarcásticos, típicos do humor britânico, e as sequências com piadas de inadequação (os jovens sendo masturbados pelas namoradas dentro do cinema, durante a sessão de um drama sobre câncer) garantem a distância de uma percepção ingênua da sexualidade.

Além disso, os atores estão bem escalados: Fionn O’Shea transmite uma timidez convincente, enquanto os olhos carregam expressões palpáveis de raiva, indignação e excitação sexual. Ele permite que o personagem evolua, não apenas rumo a uma aceitação inequívoca, mas através de estágios complexos entre a experimentação gay (vide a comovente cena com a drag queen) e os sentimentos homofóbicos de culpa após cada “escapada” com meninos. Já Lola Petticrew possui tamanho vigor em cena e facilidade com o timing da comédia que foi rapidamente aproveitada por outros filmes britânicos nos últimos anos. Ela lembra Olivia Cooke e Jillian Bell quando foram descobertas em seus primeiros filmes, sendo igualmente impressionante na desenvoltura para o jogo cênico. Os dois formam uma amizade verossímil, além de uma história de amor no sentido assexual do termo. No que diz respeito aos demais nomes do elenco, embora os colegas de turma tenham participação discreta, servem a ridicularizar os códigos sociais ligados à vida adulta – como “ser homem” e “ser mulher”, de acordo com a moral e os bons costumes. O diretor David Freyne toma a precaução fundamental de fazer com que a comicidade provenha das situações e dos personagens heterossexuais (coadjuvantes), ao passo que demonstra respeito pelos protagonistas gay e lésbica, e por outros personagens homossexuais que cruzam seu caminho.

Assim, o cineasta adota uma linha ética fundamental, ridicularizando os opressores ao invés dos oprimidos. Somem as imagens depreciativas de gays efeminados soltando gritinhos de alegria, de lésbicas masculinizadas e outros estereótipos nocivos que ainda povoam o cinema brasileiro (vide Quem Vai Ficar com Mário?, 2021). Meus Encontros com Amber transborda de ternura, mas também de consciência política e de classe. Esta história de amizade não acredita que o amor (seja ele romântico ou familiar) supera todas as barreiras, evitando as soluções milagrosas e o otimismo ingênuo. Em paralelo, escapa à armadilha de discursar sobre aceitação gay para os héteros, caso de tantos projetos pedindo que o público heteronormativo deixe de maltratar os colegas LGBTQIA+ – é preciso parar de enxergar o dever de respeito à diferença como uma clemência solicitada às classes privilegiadas. Freyne embala este ponto de vista firme dentro de uma narrativa leve, de aparência descompromissada (nenhum espectador terá a impressão de assistir a uma palestra durante a sessão). Considerando a importância de todos os segmentos sociais se verem representados nas obras de arte, com respeito e de modo complexo, há que se comemorar o lançamento no Brasil de uma produção tão acessível quanto complexa. Muitos jovens gays, lésbicas e pertencentes a outras formas de sexualidade poderão se identificar com estes personagens em suas dores e tentativas desajeitadas de superação. O cinema também é feito para os jovens não-heterossexuais, cansados de verem apenas meninos apaixonados por meninas nos filmes, nas propagandas, nas novelas, nas séries, nos ensinamentos dos pais e nas escolas. O discurso de tolerância contribui à normalização de uma pluralidade afetiva que enriquece as sociedades e os indivíduos.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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