Crítica


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Sinopse

Em Mickey 17, sem perspectivas na Terra, Mickey Barnes embarca numa expedição humana enviada para colonizar o mundo de gelo Niflheim. Sem se dar conta, se inscreve num programa chamado “descartáveis”, no qual, sempre que abatido, é substituído por um clone. No entanto, após morrer e "ressuscitar" 17 vezes, a 18ª vez não será tão simples como as anteriores. Ficção científica.

Crítica

Bong Joon Ho conquistou meio mundo com Parasita (2019), um filme que se apresentava como revolucionário e inovador – foi o primeiro longa não falado em inglês a ganhar o Oscar na categoria principal – ao mesmo tempo em que seguia uma cartilha já gasta, ainda que por meio de uma nova roupagem. A maioria destes admiradores de última hora, no entanto, esquecem – ou desconhecem – o fato do cineasta sul-coreano ser experiente nas engrenagens e diretrizes hollywoodianas, tendo trabalhado sob o sistema dos grandes estúdios (Expresso do Amanhã, 2013, produzido por Harvey Weinstein e estrelado por Chris Evans e Tilda Swinton) e até mesmo sob contrato das megaplataformas de streaming (Okja, 2017, uma produção original da Netflix e que contava com Jake Gyllenhaal e Paul Dano entre os protagonistas). Ou seja, eis um profissional que sabe fazer uso dos elementos ao seu dispor. E mais uma vez demonstra esse expertise em Mickey 17, cuja brincadeira começa já no batismo, mas que esconde, por trás dessa aparência de diversão milionária, uma forte veia crítica.

Mickey (Robert Pattinson, mostrando mais uma vez porque é um dos melhores de sua geração) é um “dispensável”. E essa não é apenas uma questão de autoestima. É como ele próprio se registrou ao buscar uma vaga na expedição humana bancada por um milionário excêntrico rumo a um outro planeta cujos estudos apontam a possibilidade de ser apto à vida humana. O problema, no entanto, é que para Mickey estar ou não nessa nave é também a diferença entre viver ou morrer: ele e seu melhor amigo, Timo (Steven Yeun), estão devendo uma pequena fortuna a um agiota conhecido por não saber perdoar aqueles que com ele possuem débitos em atraso. Sem condições de quitar a dívida, decidem fugir. Porém, são milhares os que buscam por uma nova oportunidade longe de casa. Mas raros são os que aceitam, enfim, se tornar “dispensáveis”. Eis a chance de Mickey.

Nessa realidade, “dispensáveis” são aqueles que aceitam passar por um processo de clonagem que pode até ser proibido na Terra, mas que no espaço, distante da jurisdição terrestre, podem ser essenciais em uma viagem tão longa quanto essa. Afinal, diante de qualquer situação que possa representar um perigo mortal, basta mandar que o Mickey resolva. Se ele morrer no processo, sem problema: é só imprimir outro que estará pronto para outra. Uma vez que a base é a mesma e suas memórias são preservadas, é tal qual acordar num novo dia. Não que morrer uma vez após a outra seja um dos movimentos mais divertidos pelos quais passar. Que o diga Mickey. Afinal, já em sua décima sétima versão, a própria essência parece ter ficado perdida no processo.

A trama dessa história escrita por Joon Ho adaptando o livro de Edward Ashton começa no momento em que Mickey 17 é dado como morto ao se confrontar com um enorme animal selvagem típico desse novo planeta prestes a ser habitado pelo homem. No entanto, o protagonista não só não vira comida dessa espécie ainda não identificada, como é salvo por ela. Quando consegue, enfim, retornar à base, a surpresa acontece: um Mickey 18 já está em pleno funcionamento. Como os dois poderão operar em conjunto? Se um já é descartável o suficiente, dois deles não tornaria tudo mais rápido? Esse quadro se completa com a figura do patrocinador da tal jornada, o ex-político Kenneth Marshall (Mark Ruffalo, compondo uma versão histriônica tão repulsiva quanto os tipos nos quais ele obviamente se inspirou), e sua esposa, Ylfa (Toni Collette, empregando a comédia para cometer os maiores absurdos). Quando o embate se mostra em como lidar com a população local, que pode ou não ter uma inteligência particular, o discurso se revelará tão atual quanto qualquer podcast sócio-político ou noticiário noturno: a normalização do enfrentamento poderá ser tanto o fim de todos, como a salvação de alguns.

Por meio da ficção científica, Bong Joon Ho consegue fazer um dos filmes mais interessantes de sua filmografia, ainda que acessá-lo se mostre possível por mais de uma camada. Enquanto a maioria deverá se mostrar ocupada com as sequências de ação, a busca pela sobrevivência em um ambiente supostamente inóspito e o enfrentamento por meio da lei do mais forte, os que ficarem atentos aos debates éticos sobre o uso da reprodução genética por meios artificiais e a postura colonizadora enquanto forma de prever preocupações futuras – os exemplos de hoje que remontam a um comportamento de séculos atrás dominam as discussões em grande parte dos países europeus modernos – deverão se deparar não apenas com entretenimento, mas com algo a ser refletido e observado com cuidado. Combinado com um ator ciente do uso de sua versatilidade mesmo frente às mais pequenas nuances e um realizador preocupado tanto com o texto, como com o subtexto, e o resultado se confirma, no mínimo, surpreendente.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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