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Crítica


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Sinopse

Em 26 segmentos animados por mais de 50 artistas da América Latina, pessoas narram os motivos pelos quais deixaram seus países, e o que sentem falta em suas culturas de origem.

Crítica

É possível imaginar os criadores se encantando com a própria ideia: “Vamos chamar animadores de toda a América Latina? Juntamos dezenas de histórias, e todos os estilos de animação representarão a diversidade humana e artística dos países!”. Mas como estes trechos seriam associados num filme coeso? Aí reside a parte onde os organizadores Estéban Ezequiel Dalinger e Daniel Iezzi provavelmente dedicaram pouco tempo. “Primeiro conseguimos os trechos, e depois vemos isso”, devem ter pensado. Em sets de filmagens, é comum presenciar um problema de produção diante do qual alguma alma despreocupada afirma: “Depois a gente resolve na montagem”. Pobres montadores. Migrante (2019) constitui um curioso filme de montagem onde a montagem não aparenta ter sido discutida, nem desenvolvida conceitualmente. De fato, a sinopse oficial se resume a cartilha de intenções, valorizando a iniciativa pelos nobres propósitos humanitários. “A todos os migrantes”, dedica o letreiro final, como se faltasse clareza à mensagem. O curta-metragem possui objetivos e discursos evidentes, porém lhe falta uma linguagem, um formato de cinema. Os autores sabem onde gostariam de chegar, embora ignorem o “como”. Infelizmente, o cinema se encontra em como as ideias são viabilizadas.

Em menos de seis minutos de duração, sucedem-se 26 testemunhos de narradores em off, evocando brevemente o abandono do país de origem rumo a um novo destino. Isso representa míseros 13 segundos para cada personagem explicar seu percurso, refletir a respeito e compor o mosaico sonhado pelos cineastas. Esta opção impede o desenvolvimento mínimo dos fatos, das histórias e da estética adotada. “Eu saí do país porque era difícil manter meu relacionamento numa sociedade fechada”, revela uma mulher lésbica. De qual país ela saiu, e onde estabeleceu residência? Foi recebida de maneira mais acolhedora? Partiu com a namorada/esposa? Nunca saberemos. Os indivíduos são destituídos de rosto, de nome, e interrompidos em sua fala. A proposta representa um paradoxo: pessoas são convidadas a falar, e então impedidas de se expressarem de fato. Embora se construa no formato de uma homenagem, oferece um dispositivo de despersonalização. Narradas com pressa, em uma ou duas frases, as confissões se tornam equivalentes, intercambiáveis. A dupla de cineastas pretendia valorizar a riqueza de testemunhos, mas atinge o resultado contrário. Além disso, os entrevistados expressam-se a partir de frases padronizadas, jornalísticas, respondendo a perguntas como “Por que partiu?”, “Do que sente falta no país de origem?”. A memória afetiva é substituída por fatos sucintos.

Enquanto narrativa, Migrante sequer se assemelha a um projeto artístico preocupado com a comunicação. Pelo contrário, converte-se em ferramenta retórica, munindo-se de valor prévio à realização: interessa aos criadores o simples fato de terem reunido tantos depoentes e animadores, importando pouco o trabalho elaborado através deste material. O curta-metragem limita-se a colar estes fragmentos velozes uns após os outros, sem ordem nem desenvolvimento aparente. Teria sido valioso caso estas histórias se convertessem numa só, ou se os estilos de desenho e animação se fundissem, cedendo espaço ao próximo por meio de um fluxo orgânico. Ora, os sons e imagens se sucedem numa cacofonia que dilui o peso das falas. Sim, a obra apresenta inúmeras motivações para deixar o país, além de estilos de linguagem animada. E então? O que Dalinger e Iezzi pretendem dizer sobre estas questões, para além da constatação de sua existência? No caso da migração, torna-se fundamental investigar causas e consequências. O deslocamento do norte da África para a Europa possui características distintas da chegada de um boliviano ao Brasil, ou da fuga de um homem russo aos Estados Unidos. Entretanto, o ponto de vista tão otimista quanto ingênuo abafa os contextos político, social, econômico, cultural, histórico. Alguns se mudam porque querem, outros, porque são forçados. Uns sonhariam em se mudar, porém são impossibilitados de fazê-lo. Haveria um universo psicológico, intrínseco à dimensão humana, para se debruçar.

Ao final, a experiência se assemelha a uma sucessão de flashes velozes, próximos de um dedo deslizando entre conteúdos variados na timeline das redes sociais. O resultado lembra o trailer de um projeto maior, ou talvez a apresentação institucional de uma ONG em defesa dos direitos humanos. Em ambos os casos, o objetivo se encontra externamente, naquilo que o material esclarece: um tema, uma ideologia, um ponto de vista. Trailers existem para vender o filme a que fazem referência; vídeos institucionais resumem a atividade de uma empresa ou organização. Migrante também condensa um ponto de vista, relegando ao segundo plano o cinema enquanto forma de arte dotada de ambições próprias. Por mais depreciativa que soe a sugestão, este curta-metragem não se assemelha a um filme, e sim à propaganda de um filme. As pessoas por trás das falas são desprezadas, o confronto entre os diferentes estilos de animação produzem discussão nula a respeito da estética, e os movimentos migratórios, tema de uma complexidade ímpar, se resumem à decisão de partir. Ora, a realidade vai além. Qualquer obra cinematográfica possui uma responsabilidade com a linguagem artística e com o tema retratado. Boas intenções não bastam à reflexão, nem ao cinema.

Filme visto online no VI Cine Jardim: Festival Latino-Americano de Cinema de Belo Jardim, em agosto de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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