Crítica
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Sinopse
O regime autoritário do presidente filipino Rodrigo Duterte é um dos principais exemplos mundiais de erosão da democracia. Maria Ressa, importante correspondente no sudeste asiático, se vale das ferramentas da imprensa livre para desvendar os meandros desse modelo de governo.
Crítica
Na nossa contemporaneidade, muitos países vivenciam uma erosão violenta da democracia. Mil Cortes apresenta diversos atores sociais em meio a esse processo acontecendo novamente nas Filipinas. Um presidente populista, de vocabulário vulgar, dado a piadas machistas/homofóbicas/sexistas, que justifica sua atuação controversa pela pretensa devolução da segurança à população, mesmo que isso custe centenas de vidas. Os filhos desse mandatário ocupam cargos importantes, assim transformando a labuta pública numa carreira de lógica semelhante a feudalista. Apoiadores do homem forte do governo funcionam como escudos e puxa-sacos celebrados pela população atordoada por incontáveis fake news. O discurso oficial mina a importância dos veículos de imprensa, para isso jogando apoiadores – análogos a seguidores de entidades messiânicas com poderes e saberes incontestáveis – contra jornalistas que ousam fazer as perguntas óbvias/corretas. Tudo isso se encaixa perfeitamente no Brasil de Jair Bolsonaro ou nos pretéritos Estados Unidos de Donald Trump. Porém, falamos do país asiático comandado autoritariamente por Rodrigo Duterte.
Há uma série de simetrias entre o modus operandi dos grupos de extrema direita que conquistaram o direito a governar países anteriormente orgulhosos da democracia. A cineasta Ramona S. Diaz está preocupada com o diagnóstico de uma situação complexa, para isso acumulando dados e personagens sintomáticos de um cenário globalmente recorrente. Em apenas um instante, a jornalista Maria Ressa, uma das principais críticas de Duterte dentro da imprensa filipina, menciona numa apresentação, em tom de alerta, que procedimentos vis são testados em países periféricos para depois serem aplicados em nações maiores. O reconhecimento de figuras, situações, engrenagens e afins fica por conta do espectador, especialmente os que (assim como os brasileiros) vivenciam na atualidade o pesadelo de um desgoverno fundamentado em desinformação e truculência. Mil Cortes elege algumas pessoas-chave para tirar essa radiografia de um sistema ruindo com a aquiescência de boa parte da população atordoada. Embora bem-vinda, a disposição mais jornalística do que propriamente cinematográfica joga a favor da amplitude, mas deixa a desejar quanto à precisão dos recortes.
Mil Cortes é um filme claro, de posicionamento político-ideológico inequívoco. Ramona S. Diaz não demonstra qualquer vontade de “equilibrar” seu olhar, partindo de uma predefinição a respeito de cada um daqueles personagens. O que oferece é um ponto de vista bastante específico, de viés progressista. Constantemente celebra as forças resistentes, tais como a de Maria Ressa e as da equipe do seu aguerrido site de notícias, o Rappler, e direciona aos governistas um olhar reprobatório. Em vez de concentrar esforços, por exemplo, na luta da jornalista constrangida pela máquina do governo, a realizadora abre o escopo e pulveriza a constatação da derrocada democrática das Filipinas. Como atores da pesquisa, temos a repórter censurada pessoalmente pelo presidente; o militar fanfarrão que se elege senador por reproduzir com uma fidelidade canina a lógica do chefe; a ex-dançarina que ascende no governo ao conduzir a máquina de fake news; e a postulante a uma vaga no plenário obrigada a enfrentar cotidianamente ataques. O painel é ao mesmo tempo amplo e ligeiramente vago, com espaço desigual para cada uma dessas figuras políticas e Maria situada como uma espinha dorsal.
No fim das contas, há a análise da situação das Filipinas, partindo da percepção de que não há prescrição milagrosa que cure imediatamente uma doença tão enraizada como as ideologias extremistas. Em certos instantes, parece que Mil Cortes vai se estabelecer como uma narrativa da resiliência da notável Maria Ressa, vide a forma como se apega à sua rotina cada vez mais vigiada e ameaçada por simpatizantes da situação. Ela vai ao exterior como porta-voz dos conterrâneos, ganha o apoio da advogada Amal Clooney, internacionalmente conhecida por defender ativistas, e do marido dela, George Clooney. O filme se sai bem ao fazer da jornalista a estrada principal a partir da qual temos acesso às vicinais. O mesmo não pode ser dito quando a câmera se posta diante dos governistas, homens e mulheres repetidamente lidos como palhaços imbuídos do poder de encantar o povo, como se ele formasse massas prontas à manobra. A reiteração serve somente para assegurar a leitura constante da perniciosidade das aberrações políticas. A denúncia evoca o alarmante. A cineasta defende sua perspectiva progressista, pena que formalmente de modo conservador.
Filme visto online no 26º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, em abril de 2021.
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