Sinopse
Em Milonga, Rosa tem a oportunidade de se libertar de um passado de opressão ao conhecer um homem com quem redescobre sua paixão pelo tango. Mas antes de dar um passo à frente, ela deve aceitar algumas verdades incômodas. Selecionado para o 34º Cine Ceará: Festival Ibero-americano de Cinema (2024).
Crítica
Aqui temos mais uma obra que se apresenta em um movimento crescente no cinema contemporâneo: o exame das consequências destrutivas do que permitimos que nos aconteça. Seja no gênero do horror, como no dinamarquês Não Fale o Mal (2022), ou no drama minimalista Milonga - primeiro projeto em longa-metragem da cineasta Laura González - a proposta é revelar como a violência silenciosa, cotidiana e gradual pode se transformar em algo avassalador. No caso do título de González, a narrativa se constrói como o tango, alternando momentos de aceleração e de contenção, como coreografia que busca entender os limites do que a alma humana pode suportar. A cineasta utiliza a delicadeza e a tensão para fazer de sua obra registro visceral de uma época, trazendo à tona as feridas não só da protagonista, mas da sociedade que finge não vê-las.
A escolha de Paulina García para interpretar Rosa é uma das forças que sustentam a trama. A atriz chilena, multipremiada por seu trabalho no elogiado Gloria (2013), nunca se contenta com a superficialidade de suas personagens. Aqui, ela vai além da simples performance, construindo personagem marcada por história de opressão, tentando se libertar das correntes do passado. O esforço de Paulina, aliás, para incorporar o sotaque uruguaio é impressionante, e sua interpretação torna-se estudo de contenção e tensão emocional. O início é promissor, e dá pistas de um filme de romance ao público, com Rosa encontrando possibilidade de renovação no encontro com Juan (César Troncoso), mas, como toda transformação, isso passa por encarar verdades desconfortáveis e, sobretudo, a coragem de dar passos incertos rumo à liberdade. Uma que quebra de expectativas instigante.
O contraste entre a leveza da dança e a rigidez da prisão emocional de Rosa é um dos pilares do enredo. Enquanto o tango é movimento, relação, interação, a casa onde Rosa viveu é sinônimo de silêncio, confinamento e solidão. Ela carrega as marcas de maternidade difícil e de vida marcada pela violência doméstica, sendo mulher que, ao mesmo tempo, tenta escapar e permanece cega ao caminho que pode conduzi-la para fora do labirinto. O roteiro habilmente traça a representação de uma senhora em constante luta interna: de um lado, a tentativa de dar passos em direção à liberdade (inclusive com gestos pequenos, como calçar os sapatos de salto alto vermelho que ela aprecia), e de outro, a resistência dolorosa de quem foi endurecida pela vida. No decorrer das relações, o filme faz os espectadores reverem o espelho de suas próprias mães, figuras de força, mas também de fragilidade, que resistem a se abrir para a vida e, ao mesmo tempo, são movidas por anseio que não sabem como transformar.
Embora Milonga não busque reinvenções radicais ou gestos cinematográficos ambiciosos, sua força está na sutileza com que aborda o conflito moral de mulher que está perdida em suas próprias dúvidas. A obra se destaca pela abordagem intimista, sem recorrer a grandes arcos dramáticos ou momentos sensacionalistas, mas entregando ao público reflexão profunda sobre a complexidade das escolhas humanas. González, com sua experiência em diversos curtas, demonstra competência admirável ao construir narrativa sólida. Sua direção revela talento apurado para encontrar metáforas visualmente discretas, mas carregadas de significado, e com isso, abre porta promissora para sua trajetória no cinema de longa-metragem.
Filme visto durante o 34º Cine Ceará: Festival Ibero-americano de Cinema (2024).
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