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Sinopse

A ex-primeira-dama dos EUA, Michelle Obama, apresenta um retrato íntimo sobre sua vida. Em destaque, suas esperanças e a conexão com os outros enquanto viaja.

Crítica

É curioso que as repúblicas modernas tenham chegado a 2020 sem questionar a figura da primeira-dama enquanto instituição. Nas democracias, vota-se num presidente (homem, na grande maioria dos casos) e elege-se a esposa por extensão. Esta mulher não pode mais exercer uma profissão qualquer, viver a vida de sua escolha: sua trajetória será condicionada àquela do marido, como um apêndice do cargo presidencial, reservando-se às obrigações de beleza, mensagens de paz, discursos inspiradores. Trata-se de um cargo ao mesmo tempo político e apolítico: embora não possua uma função circunscrita dentro do governo, espera-se que ela represente um modelo a seguir, além de ornar a figura do homem eleito pelo valor da família, do casamento, da estabilidade, da fidelidade. Há um caráter intrinsecamente machista nesta posição ao mesmo tempo de dependência e de inferioridade onde se colocam as mulheres – alguém já cobrou a presença do marido de Dilma Rousseff, Angela Merkel ou outras líderes mulheres? (Cristina Kirchner constitui um caso particular, é claro). De repente, ao escolherem os maridos-candidatos, estas mulheres são fagocitadas pela profissão deles.

Minha História (2020) transparece este incômodo. Embora Michelle Obama jamais critique a posição que ocupou – o que soaria mal-educado e ingrato -, ela permite observar as brechas menos idealizadas desta prisão luxuosa intitulada Casa Branca. Michelle abriu mão da profissão de advogada para cuidar das crianças pequenas; abriu mão do anonimato durante a campanha para participar ativamente da eleição do marido (e sofrer os golpes baixos da imprensa racista); abriu mão de um estilo de vida que lhe convinha para proferir discursos roteirizados, participar de jantares obrigatórios com líderes de outros países, vestir-se como acreditava que convinha ao cargo ocupado, mesmo sem ter sido eleita. Mulher inteligentíssima e astuta no controle da autoimagem, Michelle Obama evita se transformar em vítima, assumindo os privilégios que teve ao longo de oito anos. Mesmo assim, tanto a autobiografia escrita por ela quanto este documentário funcionam como estratégia de emancipação da figura presidencial: fala-se sobre Barack Obama, como esperado, porém o foco se encontra na garota inteligente, na estudante universitária, na líder inspiradora de novas gerações. De primeira-dama, ela deseja reconquistar aos olhos do público os postos de mãe, trabalhadora, amiga e filha.

O filme propõe um discurso paradoxal. Por um lado, deseja convencer o espectador que sua personagem constitui uma mulher como as outras, tendo encontros de família comuns, lamentando a perda do pai, provocando amigavelmente o irmão mais velho, escutando música pop, brincando com as amigas. Por outro lado, faz questão de narrar uma história de exceção, um conto da Cinderela transformado em realidade. Após muito esforço, a garota negra que sofreu diversos episódios de racismo ascendeu a um dos postos mais cobiçados do poder norte-americano – mais uma vez, contanto que se considere a posição de primeira-dama como algo influente, e não simbólico. A diretora Nadia Hallgren (uma mulher negra, a exemplo da maior parte dos membros desta equipe) transita entre o aspecto universal e o extremamente particular, entre a virtude da vida comum e a beleza do luxo, entre a “típica mãe negra”, como ela mesma se define, e a “mulher mais famosa do mundo”, como define o irmão. O roteiro é ambicioso a ponto de desejar simultaneamente reforçar a idolatria e desconstrui-la ou, pelo menos, demonstrar ciência e relativo distanciamento dos privilégios que a acompanham.

Minha História constitui simultaneamente um gesto político relevante – visto que Michelle Obama utiliza sua história para encorajar outras garotas negras a acreditarem em seu potencial – e um produto de sustentação de marketing. É sintomático que o filme mantenha o título do livro escrito pela primeira-dama, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, convidando o espectador a associar o documentário à publicação. O projeto possui tanto o aspecto de “segredos de bastidores”, por mencionar as brigas entre Michelle e Barack, o preconceito sofrido em Princeton e o fato de não ter sido a filha preferida de sua mãe, quanto a aparência de um simples discurso motivacional. Na boca de 90% dos influenciadores, palestrantes e coaches, estas mesmas palavras se converteriam em retórica meritocrática. Por vir de uma mulher de exceção, uma figura popular e apreciada, de valores progressistas e posições firmes, transforma-se em um gesto potente. A montagem faz questão de inserir muitos rostos de mulheres, especialmente garotas negras, devorando cada palavra de Michelle Obama em sua turnê promocional. Onde alguns verão autoajuda, outros enxergarão uma passagem de bastão às novas gerações, um convite ao empoderamento.

Os melhores momentos se encontram no uso político feito da imagem da protagonista. Quando se encerram as sequências sobre a escolha dos vestidos de Michelle Obama e sobre seus guarda-costas sendo “quase irmãos” para ela, a cineasta permite que a protagonista disserte sobre o racismo, a desigualdade de renda, a importância do voto para a manutenção das conquistas sociais, a importância dos direitos à comunidade LGBTQI+. O roteiro nunca deixa que estes instantes se estendam, visto que o documentário pretende ser popular, conquistando ao mesmo tempo conservadores e progressistas, adultos e jovens. A política torna-se um pano de fundo onipresente, porém não aprofundado. A primeira-dama evita demonstrar ressentimento contra os jornais que a difamaram, jamais ataca os opositores políticos, escapa à possibilidade de mencionar Trump ou Bush em suas falas. O filme demonstra impecável decoro e elegância, no sentido de transmitir uma imagem positiva da protagonista sem ofender quem quer que seja.

Não se pode esquecer que este não é um projeto apenas sobre Michelle Obama, mas com Michelle Obama: ela permite a gravação das imagens que a satisfaçam, utilizando a câmera a seu favor. Costuma-se dizer que os diretores possuem poder sobre a imagem de seus personagens, porém aqui a lógica se inverte: a protagonista devora Hallgren e a câmera. Quem ousaria se apropriar da oportunidade raríssima de passar dias ao lado da primeira-dama e utilizar o material para um discurso contestador? O resultado evita controvérsias: o que pensaria ela do papel do marido em Guantánamo, do financiamento de tantas guerras, da ausência de mulheres na presidência? Assim como a personagem, o documentário prefere veicular mensagens amplas sobre a crença de si mesmo e o valor de “viver o sonho americano” - não por acaso, estas são as últimas palavras escutadas no filme. O ardiloso caminho para se sustentar na política, o jogo sujo, as concessões aos opositores e os acordos indesejados são ocultados do público. Talvez uma figura fascinante como Michelle Obama merecesse uma versão elaborada por pesquisadoras, historiadoras, com mais material de arquivo, e dotada de olhar crítico – em outras palavras, uma versão não autorizada.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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