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Sinopse

Maycon tem de dividir seu tempo entre os treinos de boxe e dois subempregos. Sua situação se complica quando é levado pelas circunstâncias a cuidar sozinho da filha que teve com Michele. Ele então precisa tornar-se pai.

Crítica

O início de Mirador (2021) desperta expectativas muito específicas para o resto da narrativa. Maycon (Edilson Silva) é apresentado enquanto boxeador. Ele entra nos ringues, troca socos com o adversário ao som de capoeira, sangra no corner, respira fundo. O imaginário do cinema de boxe está presente em cada enquadramento da rápida luta, onde o protagonista parece corresponder ao azarão capaz de superar lutadores mais fortes e triunfar no final. Em seguida, ele é descrito enquanto pai, precisando cuidar sozinho da filha de menos de dois anos de idade. Entre os pequenos empregos de lavador de pratos num restaurante e carregador de mercadorias, desenha-se outro subgênero preciso: o melodrama do herói sacrificando-se para dar uma boa condição de vida à criança, enquanto se torna uma pessoa melhor através das dificuldades (de onde se concluiria que a pobreza seria benéfica, pois forma caráter). Depois, Maycon é visto incontáveis vezes com o celular na mão, ignorando a mãe da criança e a própria filha. Sugere-se uma crônica da incomunicabilidade contemporânea, culminando na abertura ao mundo através da paternidade. Julgando pelo início, o homem nasce torto, mas a sociedade o corrige.

Felizmente, o diretor Bruno Costa, que assina o roteiro junto de William Biagioli, rompe com a previsibilidade cena após cena. A introdução trabalhava com uma câmera na mão agitando-se exageradamente, inclusive diante dos personagens sentados dentro de casa. Entretanto, a imagem se acalma e permite a contemplação. Os códigos do filme de esporte são ignorados, visto que o boxe jamais representa uma paixão ao herói. Apesar de conduzir a trama rumo à luta final, o drama faz questão de diminuir o peso deste conflito por meio de um anticlimático corte na montagem. Maycon nunca se torna um superpai, apaixonado e dedicado, apenas um sujeito cuidando razoavelmente da filha – uma garotinha comportadíssima, diga-se de passagem. Ele tampouco sofre demais neste percurso: ao invés da figura do pai mártir dos melodramas americanos (Will Smith em À Procura da Felicidade, 2006; Michael B. Jordan em Fruitvale Station: A Última Parada, 2013), o protagonista brasileiro “dá um jeitinho”. A situação continua precária, porém estável: não se passa fome, não se chora de dor, nem de saudade.

Este aspecto brutal da mise en scène resulta na sobrecarga do corpo enquanto símbolo onde todas as emoções de Maycon se traduzem. Avesso à psicologia, o diretor prefere uma narrativa crua, do tipo que acompanha o herói subindo e descendo escadas, entrando e saindo de empregos, pulando corda e disparando socos de verdade. Relegam-se ao segundo plano as dores pela partida de Michele, pela perda de um amigo querido, pelo possível abuso de menores. O protagonista jamais conduz a própria vida, apenas se adapta a estímulos mais fortes do que ele. Por isso, os empregos são físicos, e implicam na exaustão do corpo que transpira, sangra, goza, carrega lixo, carrega caixas. Há um componente triste na vida deste homem sem amor romântico, sem amigos fora do trabalho, sem lazer, sem sonhos para o futuro. Maycon passa o filme inteiro fazendo o que precisa fazer, sem resistência, porém sem satisfação. Ele se torna um corpo em movimento perpétuo, dedicando dias e as noites às obrigações. O filme tampouco lhe concede qualquer saída poética, algum elemento ou lugar capaz de canalizar angústias. O realismo social se traduz num olhar tão violento quanto inevitável aos fatos. A direção demonstra respeito pelos personagens, talvez até carinho, mas nunca piedade.

Esta escola cinematográfica da câmera na mão e do filme-personagem, onde se acompanha o dia a dia sem se encaminhar a um desfecho preciso, depende muito da prestação do ator principal – o corpo em questão. Edilson Silva vem crescendo bastante desde O Porteiro do Dia (2016), Azougue Nazaré (2018) e Bacurau (2019). Ele oferece uma construção de bela simplicidade, sem vaidade nem afetação. Existe um despojamento nas expressões e na fala de Maycon, algo que Costa filma muito bem. Se Silva não extrai ainda mais do herói, isso se deve a uma escolha deliberada do autor em manter um rígido minimalismo. Nenhuma cena se sobrepõe às demais a ponto de ser considerada um clímax, ou proporcionar catarse ao lutador. O ator sabe demonstrar potência e libido quando necessário (vide os trabalhos com Fábio Leal e Kleber Mendonça Filho), mas também oferece o corpo bruto e a composição turrona quando solicitado. Se houvesse alguma brecha no projeto às pequenas poesias cotidianas (algo que Arábia, 2017, efetuava particularmente bem), o filme e seu personagem poderiam brilhar ainda mais.

De fato, Mirador teria arestas a aparar. O trabalho de captação e edição de som resulta apático: em certos momentos, Maycon vive num universo-bolha, sem o barulho de carros na rua, de cachorros na vizinhança ou de uma televisão ligada, por exemplo (vide os silenciosos treinos no quintal, e a descoberta da partida de Michele). Já a direção de fotografia tende a fechar excessivamente os enquadramentos, sobretudo no terço inicial, sem disfarçar a dificuldade de se mover no consultório da pediatra. Os fades da montagem funcionam para os saltos temporais, porém não contribuem a construir tensão, nem ritmo. Ao final, Bruno Costa se apropria de gêneros intimamente ligados à finalidade (a última luta do filme de esporte, a resolução da justiça quanto à guarda da criança), apenas para ocultar o desfecho dos mesmos. Trata-se de um exercício interessante, tão admirável em sua coesão quanto difícil em termos de imersão ou identificação por parte do espectador. O drama comportaria cenas dissonantes, metáforas destituídas de significado explícito na narrativa, sem prejuízo ao conjunto. Há talento de sobra tanto na equipe criativa quanto no elenco, ambos tolhidos pela condução “elegante” e funcional, pouco arriscada esteticamente ou em termos de produção de sentidos. Mesmo assim, resta a curiosidade quanto aos próximos projetos do diretor.

Filme visto online na 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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