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Sinopse
Em Misericórdia, Jérémie volta à sua cidade natal para o funeral do seu primeiro patrão, o padeiro do vilarejo. Ao chegar, ele decide permanecer por mais algum tempo ao lado de Martine, a viúva do homem. Essa presença, no entanto, acaba perturbando o ambiente ao criar uma desavença com o filho da mulher, Vincent. Exibido no Festival de Cannes 2024.
Crítica
A parábola do Filho Pródigo é uma das mais célebres da bíblia cristã. Nela, um caçula desperdiça a sua parte da herança familiar e retorna arrependido ao lar. O pai faz festa para o receber, já o irmão mais velho o rejeita. Em Misericórdia, Jérémie (Félix Kysyl) é esse filho pródigo que volta à pequena localidade onde morou na juventude. No entanto, ele não pode ser recebido com alegria por sua “figura paterna”, pois o regresso justamente tem a ver com a vontade de prestar as últimas homenagens a esse homem importante dos velhos tempos. A trama não explica porque o protagonista morou ali no passado, mas adverte que entre ele e o falecido havia uma conexão de mentor e pupilo – Jérémie aprendeu a ser padeiro com o falecido. No entanto, a sua presença causa reboliço crescente nos vivos. Todos ao redor são profundamente afetados pela aparição do forasteiro. Vincent (Jean-Baptiste Durand), o amigo de infância e filho do falecido, oscila entre a euforia maldisfarçada e um sentimento de raiva possessor. Martine (Catherine Frot), a viúva que desempenha simbolicamente o papel da mãe, anseia pela permanência de Jérémie como quem reivindica dele o calor humano. O amigo introspectivo de antigamente (Sébastien Faglain) se inquieta de modo evidente. E até o padre do lugarejo (Jacques Develay) se agita com chegada do estrangeiro. Aos poucos percebemos que o motor de tudo é o desejo, mais precisamente o enorme potencial destrutivo gerado pela impossibilidade de usufruir dele.
Misericórdia reafirma o talento do cineasta Alain Guiraudie para criar suspense em situações retratadas com certo grau de irrealidade. Como havia feito no brilhante Um Estranho no Lago (2013), ele estabelece um cenário bastante corriqueiro, o preenche com informações e situações muito verossímeis, mas registra momentos pontuais como se eles fossem pequenas epifanias poéticas. Como nas cenas de Jérémie transitando pela floresta do lugarejo onde está hospedado. Do ponto de vista prático, são caminhadas despretensiosas para espairecer a cabeça. No entanto, a excepcional fotografia de Claire Mathon constrói uma lógica visual que transcende momentaneamente a realidade. É como se Jérémie caminhasse por uma pintura impressionista e assim se desprendesse do plano concreto para enfatizar a dimensão simbólica da trama. Não à toa, Claire também assina a fotografia de outros filmes com imagens de semelhante aspiração metafísica, entre eles Um Estranho no Lago, Spencer (2021), Pequena Mamãe (2021) e Retrato de uma Jovem em Chamas (2019). Tal aspecto é essencial à construção da teia de desejos mal digeridos que vai acrescendo camadas nesse enredo no qual os personagens têm enormes dificuldades para lidar com aquilo que os mobiliza. Jérémie se torna o centro gravitacional de uma guerra silenciosa que as pessoas ao seu redor travam com as próprias vontades e paixões. Passando longe de ser uma vítima inocente, ele se torna o gatilho vivo das turbulências alheias.
Vincent é o coadjuvante mais indicado à ruína, pois também é aquele que imediatamente entra em parafuso com o retorno de Jérémie. Alain Guiraudie faz questão de enfatizar essa enorme confusão interna em detalhes, sublinhando a forma como ele olha para o amigo da infância que regressa a fim de prestar homenagens ao seu pai, passado pela crescente animosidade que o faz violar privacidades, chegando às demonstrações desajeitadas do afeto indesejado que ganha sintomas de violência. Como ele não consegue elaborar amorosamente a atração sentida por Jérémie, precisa dar vazão a essa pressão crescente de outra forma, assim partindo à agressão física. Desse modo, a tragédia em Misericórdia é ocasionada pela tonelada de convenções sociais interpostas entre Vincent e seu objeto de desejo. Nada disso aconteceria se o querer não fosse tão vigiado e castrado, certo? E quando um assassinato acontece, o cineasta coloca o espectador imediatamente ao lado de Jérémie, a despeito do que ele tenha cometido. Apenas nós e esse protagonista sabemos exatamente o quê (e por que) aconteceu no interior da floresta. Assim, passamos a temer que ele seja pego e que a polícia tenha sucesso na investigação. Torcemos que a mãe postiça nunca saiba do seu ato desesperado para sobreviver e, logo, que ele sequer tenha de prestar contas a deus. Justamente quando a consciência, mecanismo importante e traiçoeiro, ameaça colocar tudo a perder, é preciso voltar à referencial parábola do Filho Pródigo.
O ato derradeiro de Misericórdia retoma algo fundamental da citada passagem bíblica, pois também fala de arrependimento, perdão, reconciliação e, sobretudo, amor incondicional. Nesse microcosmo que flerta com o onírico, o pecado pode ser reconsiderado se houver a possibilidade de o amor prevalecer. E isso está materializado na disputa velada estabelecida entre a mãe simbólica e o padre (aqui, como líder espiritual, o pai restante). Um dos dois escancara que sabe a verdade – aliás, numa cena belíssima de inversão de posições ambientada no confessionário. Além de anunciar que sabe, o pároco confessa um amor capaz de ultrapassar os julgamentos morais. A outra parte da batalha nunca chega a dizer com todas as letras que ama e deseja Jérémie, mas deixa migalhas significativas nas entrelinhas. E, inclusive, podemos conjecturar que ela também conhece a mais pura verdade, porém opta por a enterrar bem fundo em função da oportunidade de herdar o amor que Jérémie sentia por seu falecido marido. O filme entrelaça constantemente essas disposições semelhantes (mas também singulares) dos personagens que giram em torno do Jérémie. Depois de ser Édipo, ele ganha as roupas do homem morto, convocado a ser substituto. Coagido pelo amigo que o adora em sofrimento, ele vira vítima. Amorosamente chantageado pelo padre apaixonado/benevolente, ele fica preso a um vínculo. Novamente recorrendo à bíblica, Jérémie é um animal sacrificado para varrer dali os pecados dos outros, o cordeiro pecador cujo sangue será sorvido por vampiros emocionais e impotentes.
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