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Crítica

A realidade homossexual tem se transformado com uma velocidade espantosa nos últimos anos. E se no Brasil o fato de dois personagens do mesmo sexo se beijarem na novela das oito ainda gera debates acalorados e discussões exaltadas tanto contra quanto a favor, é meio que consenso que em países do primeiro mundo essa situação está mais desenvolvida e melhor aceita pela sociedade como um todo. Porém, quando se diz algo neste sentido, pensa-se logo nas grandes cidades do mundo, como Nova York, Londres ou Paris. Pois quando voltamos a atenção para as pequenas comunidades do interior, as diferenças entre cá e lá diminuem bastante. Como podemos observar em Misfits, interessante documentário que se debruça sobre a realidade de jovens homossexuais inseridos em uma sociedade predominantemente religiosa e longe dos grandes centros urbanos.

Conduzido através de um processo de curiosa observação do cineasta sueco Jannik Splidsboel, Misfits dirige sua atenção a três jovens moradores de Tulsa, Oklahoma, nos Estados Unidos. A cidade com quase 400 mil habitantes possui mais de duas mil igrejas e está situada bem no meio do chamado Cinturão Bíblico norte-americano, região central do país extremamente conversadora e cuja boa parte da população está atrelada aos mais diversos graus do fundamentalismo religioso. É neste mesmo ambiente social em que apenas um único centro social comunitário lgbt desenvolve suas atividades, tentando fazer diferença num esforço de Davi contra Golias. Este é o único lugar em que estes garotos e garotas podem, enfim, ser como de fato são, livres de medos e preconceitos. Um ambiente isento de julgamentos e cobranças sociais, muito mais acolhedor, na maioria dos casos, do que seus próprios lares de origem.

Mas o que faz Misfits – ou Desajustados, numa tradução literal – ser relevante dentre tantos contextos similares ao redor do mundo? Seus protagonistas. Não que os dramas vividos por Larissa, Ben ou D. sejam exclusivos, mas o que importa aqui é a maneira como eles decidem enfrentá-los. A menina, lésbica assumida desde a adolescência, tem 17 anos e já mora fora de casa – de onde saiu expulsa pela mãe. Essa independência forçada a tornou consciente da sua posição, identidade e atitudes. Hoje, vivendo com a namorada e cercada por amigos gays como ela, é mais segura de si e consegue pensar na vida que quer para si. Um reflexo dessa mudança se percebe também em Ben, o único dos três que segue morando com a família após se assumir. E justamente por ter sido bem acolhido, viu seus laços familiares se fortalecerem, como é possível conferir no emocionante depoimento do irmão. A situação, no entanto, não é tão favorável para D., que precisou superar uma realidade de abusos verbais, mentais e até mesmo físicos para conseguir se encontrar.

O melhor de Misfits, no entanto, é a ausência de julgamentos. Talvez em algumas passagens isso signifique depositar uma confiança exagerada no espectador, o que, por outro lado, revela seu maior problema – trata-se de um filme para iniciados no tema, portanto. Mas para estes tem-se em cena três realidades distintas e distantes, mas ainda assim próximas, sejam entre si ou mesmo com a de qualquer outra pessoa em situações similares. O debate entre sexualidade e religião, a necessidade da (re)construção da autoestima, a importância da família e dos amigos e outras questões até mais triviais, como, por exemplo, demonstrações públicas de afeto, ganham reflexões que evitam a superficialidade e se destacam justamente pelo olhar íntimo daqueles que a vivenciam diariamente na pele. Identificação, portanto, não é só uma questão geográfica ou física, mas, acima de tudo, de ideias.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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