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Sinopse

Eleanor é a brilhante filha mais nova de Karl Marx. Ela é uma das primeiras pensadoras a vincular feminismo e socialismo, participando ativamente da reivindicação das mulheres operárias.

Crítica

Eleanor Marx foi uma importante figura política do século XIX. Poliglota, de ampla formação intelectual, fundou a Liga Socialista e participou da Fundação Social Democrata. A britânica desempenhou um papel notável na denúncia sobre a exploração do trabalho infantil na Europa e nos Estados Unidos. Além disso, traduziu para o inglês algumas das maiores obras da literatura, como Madame Bovary. Eleanor também era filha de Karl Marx, autor de O Capital. Com tamanho currículo, a biografia sobre esta mulher vanguardista poderia estar repleta de furor político e defesa da luta proletária por um ponto de vista feminino. No entanto, contrariando as expectativas, a diretora Susanna Nicchiarelli enxerga na protagonista uma jovem apaixonada. Segundo este ponto de vista, ela teria sido uma mulher que lutou pelo relacionamento falecido, enfrentou o ciúme e a inveja alheios, apoiando o marido infiel durante um longo relacionamento tóxico. Eleanor sofria com a distância de seu amado, comprava brigas por ele. A função política adquire um papel secundário: a cineasta prefere convertê-la na heroína sofrida de algum drama de Jane Austen.

Há um problema de coerência nesta abordagem: não se representa a trajetória de uma revolucionária através de uma linguagem burguesa. Miss Marx (2020) segue à risca o imaginário popular dos filmes históricos, com atuações pomposas, posturas excessivamente rígidas, cenários impecáveis (apesar de Eleanor e o marido Edward Aveling enfrentarem graves problemas financeiros), sentados em enquadramentos frontais e simétricos, declamando frases como quem entoa um poema clássico. A aproximação entre os amantes se converte numa inevitabilidade desde o primeiro olhar. O beijo apaixonado num jardim belíssimo, o encontro com a mulher que cobiça seu marido e a felicidade dos casais sorridentes na praia evocam a construção típica da telenovela. A direção não se preocupa com nuances: os personagens estão felicíssimos ou deprimidos, amicíssimos ou rancorosos. Devido à necessidade de avançar no tempo, letreiros efetuam saltam abruptos entre os anos: o casamento ocorre logo após o primeiro encontro, e na cena seguinte o casal briga por não se suportar mais. Mas como o casal vai do paraíso ao inferno?

Politicamente, Marx se converte numa palestrante motivacional. Ele profere algumas palavras de ordem aqui e acolá, seja diretamente à câmera, ou a si mesma enquanto arruma a casa. Numa rara cena de discurso em público, recebe atenção total e irrestrita da multidão. Não há confrontos, provocações, nem qualquer tipo de pressão dos patrões. Ora, que luta política, sobretudo durante o fortalecimento dos parques industriais, se produz sem conflitos, brigas, ameaças? A heroína observa crianças e mães sofrendo em poses estranhamente estilizadas, semelhantes a quadros renascentistas. Ela admira os pobres com olhos piedosos, compadece-se da situação alheia e vai embora - não seria esta uma postura conformista? A mulher aparenta desenvolver suas opiniões sozinha, visto que não participa das reuniões dos partidos. Nicchiarelli prioriza a integridade moral da figura histórica, dizendo-nos que foi uma boa esposa, boa filha, amiga exemplar. A decisão de condicionar Marx à relação com os homens (pai e marido, em particular) constitui um ato questionável. O teor de artificialidade típico do drama teatral acarreta num problema ainda mais grave, devido à proximidade com a exploração socioeconômica existente até hoje.

A direção se perde, portanto, na distinção entre um filme sobre uma época antiga e um filme de olhar e aparência antigos. É perfeitamente possível desenvolver uma obra atual sobre 150 anos atrás, seja pelas ferramentas de linguagem, pelo discurso contemporâneo, ou ainda pela aproximação (real ou simbólica) entre o passado e o presente. No entanto, Miss Marx sublinha a dramaticidade ao limite do paródico, a exemplo da cena em que a ativista descobre um segredo no passado do pai. Romola Garai e Patrick Kennedy são atores de talentos, porém calibrados para ressaltarem o teor de martírio buscado pela direção. A principal confirmação do caráter posado da mise en scène se encontra na cena em que Eleanor e Edward encenam uma peça de teatro. A diretora busca provocar estranhamento pelo texto  inesperado para o temperamento dos personagens. No entanto, a representação-dentro-da-representação, rígida e mal atuada (visto que Eleanor e Edward não eram profissionais), soa idêntica à performance “natural” dos atores. O olhar da direção confunde respeito aos fatos com solenidade excessiva.

O filme traz duas ideias muito boas, uma na cena inicial, outra na conclusão. Questionada sobre a existência da vida após a morte, Eleanor responde ao neto de Karl Marx que não existe eternidade, “ou seu avô estaria queimando no inferno agora”. Esta fala aponta para uma deliciosa ironia que nunca mais aparece na narrativa. Os diálogos ganhariam muito caso apostassem em trocas mais afiadas como esta. No final, a mulher do século XIX dança ao som de punk rock. Enfim, sugere-se a proximidade com o tempo presente, através da poesia alegremente anacrônica, capaz de representar o espírito desta personagem ao invés de contá-lo. Infelizmente, a metáfora chega tarde demais, sendo incapaz de ressignificar os amores românticos dos 90 minutos precedentes. Acena-se nestes dois instantes ao ótimo filme que poderia ter existido. Entretanto, estas iniciativas se perdem em meio a trilhas sonoras do cinema mudo, provas de amor incondicional e utilização burocrática de imagens de arquivo, desconectadas da realidade da protagonista. O roteiro não sabe como explorar dramaticamente as irmãs de Marx ou ainda a relação complicada com Engels. A produção soa indecisa quanto às lições que pretende extrair desta história real. Triste ironia: a biografia sobre uma mulher socialista pode ser interpretada enquanto defesa dos ideais conservadores e fatalistas da família patriarcal.

Filme visto online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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