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Sinopse

A fim de exterminar pragas, um homem desenvolve uma poderosa substância inseticida. Acidentalmente, dispara a mesma contra sua mulher, o que a mata. Logo, ele se vê mergulhado numa delirante conspiração.

Crítica

Considerada infilmável por muitos – e até mesmo ilegível e incompreensível por outros tantos – a obra original Naked Lunch – ou O Almoço Nu, no Brasil – de William S. Burroughs sempre foi uma paixão confessa do cineasta canadense David Cronenberg. Tanto que alguns dos seus primeiros filmes, como Enraivecida na Fúria do Sexo (1977) e Filhos do Medo (1979), já continham em suas tramas elementos citados pelo autor em seus escritos. Mas esse encontro entre os dois só iria se concretizar de forma efetiva em Mistérios e Paixões, adaptação direta do romance – e um dos títulos em português mais esdrúxulos de toda a filmografia de Cronenberg (e olha que a concorrência é forte). E ainda que haja em cena muitos mistérios e algumas paixões conturbadas, nada poderia ser mais enigmático e perfeito do que o almoço nu ao qual estes personagens são convidados durante essa história.

Assim como Cidade dos Sonhos (2001), um dos melhores e mais controversos filmes de David Lynch, Mistérios e Paixões também é um dos expoentes em termos de polêmica dentro da carreira de Cronenberg. Outras semelhanças entre estes dois filmes é a necessidade de se prestar atenção aos mínimos detalhes – afinal, tudo que é exibido importa, pois foi muito estudado previamente e sua aparição possui um significado relevante para o todo – e o fato de ambos habitarem terrenos oníricos e ilusórios. A leitura mais primária e superficial poderia acusar este longa de não fazer sentido, de exceder nos absurdos e de representar em primeiro lugar nada mais do que as expressões e anseios mais insanos do seu realizador. Mas aqueles que se dedicarem a um olhar mais apurado e forem além da mera observação irão encontrar uma jornada tão marcante quanto irresistível. 

Bill Lee (Peter Weller, que recusou estrelar RoboCop 3, 1993, após ser protagonista dos dois primeiros episódios, para atender ao convite de Cronenberg) é um escritor que desistiu de escrever. Para ganhar a vida, encontrou emprego como dedetizador. Seus problemas começam quando o veneno necessário para seu trabalho acaba antes do tempo, o que ele logo descobre ser culpa da própria esposa (Judy Davis, em uma performance premiada pelos críticos de Londres e de Nova York), que está viciada no produto químico. Temeroso em perder o sustento, tenta reprimir os impulsos dela, mas o que acontece é que acaba experimentando a substância. E a partir desse momento nada mais será como antes.

Com inspiração obviamente kafkiana, Mistérios e Paixões navega sua narrativa através das alucinações e delírios do protagonista, que de uma hora para outra começa a acreditar que é um agente secreto, lidando com baratas em forma de máquinas de escrever, bizarros alienígenas – os mugwumps – o contatam a todo instante com novas ordens e demandas – e atividades proibidas o levam a investigar as ligações entre uma sociedade homossexual no norte da África e uma possível iniciativa governamental em que qualquer um pode ser o principal suspeito – inclusive ele. Sua viagem à Interzone, onde tudo parece funcionar sob um outro tipo de lógica, e a paranóia crescente no que diz respeito à necessidade de escrever relatórios diários sobre suas atividades nada mais são do que reflexos de sua atividade anterior, manifestando-se como um instinto criativo que ganha impulso uma vez que as amarras de uma vida ordinária se desfazem após o contato com a droga.

Muito do enredo de Mistérios e Paixões é inspirado na própria vida de Burroughs, e estas referências estão espalhadas por todo o filme. O autor também foi acusado de assassinar a esposa em uma brincadeira idiota quando bêbado, os dois amigos igualmente escritores do protagonista seriam reflexos de Jack Kerouac e Allen Ginsberg, seus dois melhores companheiros, e até Kiki é o mesmo nome do amante gay que ele teve enquanto escrevia O Almoço Nu. As conexões entre um e outro foram tão fortes que Burroughs chegou a ser convidado a narrar o trailer original do filme, explicando a polêmica que envolveu a obra desde o princípio e divagando sobre a ironia de vê-la, enfim, nas telas. Quando dois gênios se encontram e criam algo tão único e surreal, explicações não são necessárias. E neste caso específico, desvendá-las através do esforço individual de cada um na audiência é somente mais um ganho que este trabalho genuíno tem a oferecer a cada um que a ele se dedicar com intensidade e sem reservas.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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