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Sinopse

O Sindicato de Trabalhadores Rurais de Ipojuca é um lugar por onde passa, diariamente, uma massa de trabalhadores rurais, todos com suas vidas talhadas pela cana.

Crítica

Neste documentário, a diretora Dea Ferraz propõe um formato raro dentro do cinema brasileiro: a análise sociológica de instituições, esgueirando-se por um setor específico na intenção de descobrir, por extensão, a vida das pessoas que passam por ali. O cinema norte-americano possui tradição neste formato, em especial através do trabalho monumental de Frederick Wiseman. O cineasta costumava se sentar discretamente nos cantos das salas de alguma instituição (juizado de menores, monastério, agência de modelos) e filmava horas e horas, durante meses. Assim, extraía os casos mais potentes, os olhares mais expressivos, acompanhando inclusive a passagem de tempo para alguns personagens recorrentes. Recentemente, o ótimo Parque Tonsler (2017) efetuou um percurso semelhante, posicionando a sua câmera dentro de um guichê de votação de uma cidade norte-americana de maioria negra, deduzindo a partir deste local as relações raciais de uma comunidade inteira.

Assim, um conteúdo que não foi feito para virar cinema (entenda-se: não constitui algo excepcional, não desenvolve um conflito, não acompanha personagens) torna-se fruto da apreensão de um cinema de vocação científica. Modo de Produção acompanha a rotina do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipojuca, onde dezenas de trabalhadores da cana-de-açúcar lutam para conseguir suas aposentadorias, rescisões ou compensações relacionadas a problemas de saúde. 80% das cenas se passam dentro de uma sala comum, onde um funcionário explica aos trabalhadores os papéis que devem trazer, as cópias que faltam para anexar ao arquivo, o motivo de demora para uma resposta do governo ou dos antigos patrões. Fala-se muito em trâmites burocráticos, e Ferraz parte do princípio que estas trocas formais e breves bastam para retratar, metonimicamente, a vida destas pessoas fora do Sindicato. Pelos curtos relatos orais dos trabalhadores, ou dos funcionários lendo os dossiês, deveríamos compreender a dificuldade do trabalho com tratores e com produtos químicos, por exemplo.

Ora, essa representatividade soa bastante limitada. Primeiro, ninguém se torna um personagem de fato – nem os trabalhadores, nem os representantes do sindicato. Compreende-se que a narrativa busque uma forma de protagonismo coletivo. Entretanto, conhecemos pouquíssimo de cada pessoa que se senta à mesa. Na maior parte dos casos, eles sequer conversam, ou balbuciam monossílabos em resposta às questões protocolares: “Trouxe o comprovante de residência? Pode fazer uma cópia deste documento?”. Estas pessoas discorrem pouco sobre as suas histórias, sobre as dificuldades vividas no trabalho ou mesmo no funcionalismo público. É uma pena que nenhuma delas retorne para acompanharmos o andamento dos processos, ou ainda que a câmera não acompanhe estas pessoas quando chegam ou saem do sindicato. Uma mulher afirma vir de longe, e talvez o espectador pudesse compreender muito da vida dela pelo trajeto no ônibus, pela longa caminhada até o sindicato. Talvez se percebesse melhor esta rotina ao acompanhar a vida dos funcionários quando saem da sala.

Este é um projeto sobre os trabalhadores, não um projeto com os trabalhadores. Apesar de ocuparem a maioria das imagens, eles não possuem voz, nem protagonismo. Por ausência de informações sobre seus direitos, não possuem autonomia em suas batalhas trabalhistas, e tampouco comandam os rumos narrativos. A montagem justapõe os casos sem real transformação no discurso: os rostos se acumulam, porém dialogam pouco uns com os outros. Existe evidente dificuldade em transmitir dinamismo a partir de cenas e imagens tão semelhantes. Esteticamente, os planos de conjunto ou planos próximos resultam fracos, trabalhando em digital de baixa qualidade com a pouca luz das lâmpadas, além de duas ou três opções de enquadramento dentro dos cômodos apertados. Nem mesmo a dissociação entre som e imagem é utilizada para provocar qualquer tipo de fricção – há poucas ideias de mise en scène neste filme que privilegia o conteúdo à forma.

As duas melhores cenas ocorrem no início e no final. Trata-se de duas rápidas passagens quando vemos os campos, as estradas, o cais. Um trabalhador sentado no sindicato de repente se transforma em homem com uma enxada na mão, ou seja, o ofício se torna representação, não apenas palavra. Como seria ótimo ver estas outras pessoas trabalhando igualmente, em suas casas, ou conversando com os patrões! A importante informação a respeito do desmonte trabalhista pós-golpe de 2016, incluída nos letreiros finais como uma forma de consideração a posteriori, faria uma diferença imensa caso fosse transmitida em imagens, integrando organicamente o discurso do filme. “Há resistência”, bradam os letreiros, e a palavra de ordem possui força e relevância. Infelizmente, ela não faz parte de uma narrativa que se limita à constatação da desigualdade e da desinformação. O Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipojuca constitui um ótimo ponto de partida, mas ele não poderia ser também o ponto de chegada.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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