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Sinopse

Professor de medicina, Isak Borg relembra vários pontos importantes de sua vida durante o percurso que o leva até uma universidade em que lecionava, a fim de receber uma honraria. Acompanhado da nora, ele evoca as memórias familiares, o furor do primeiro amor, as promessas da juventude e os morangos silvestres que têm gosto de nostalgia.

Crítica

O que os sonhos dizem sobre nossas vidas? Para o velho professor Isak Borg (Victor Sjöström), sonhar significa entrar em contato com sentimentos e lembranças que há muito não lhe eram presentes. No dia em que vai receber um prêmio por seus 50 anos como médico, Borg embarca em uma viagem – literal e filosófica – entrando em contato com uma parte de sua vida que parecia até então distante. O cineasta Ingmar Bergman realiza mais uma obra-prima em 1957 (mesmo ano de lançamento do imprescindível O Sétimo Selo) ao dirigir Morangos Silvestres, um filme que costura muito bem a realidade com o devaneio, o fato com o sonho, o alcançado com o desejo.

Com roteiro assinado por Bergman, que tirou a inspiração durante uma viagem que ele mesmo empreendeu, Morangos Silvestres nos apresenta a Isak Borg em uma manhã extraordinária. Depois de ter um sonho estranho, envolvendo sua própria mortalidade, ele decide arrumar as malas e fazer o trajeto de Estocolmo a Lund por carro, não avião, como planejado. Com isso, sua nora, a bela Marianne (Ingrid Tullin), pede para acompanha-lo, na expectativa de voltar ao seu marido, Evald (Gunnar Björnstrand), com quem não tem tido um bom relacionamento. Durante a viagem, Borg faz uma pequena parada na casa onde costumava passar os verões junto de sua família. Aquela visita, com os morangos silvestres à beira do caminho, engatilha lembranças do passado. Memórias do seu primeiro amor, Sara (Bibi Andersson), moça que estava apaixonada não por Isak, mas por seu irmão, Sigfrid (Per Sjörstrad). Ao acordar deste devaneio, o doutor conhece um trio jovem que pede carona – dentre eles uma moça chamada Sara (Andersson, em papel duplo) que lembra muito sua primeira paixão. Continuando a viagem, um casal com problemas também se une ao grupo, ainda que por pouco tempo. A cada nova parada, uma nova lembrança, um novo mergulho no passado e uma nova forma de ver a vida presente.

Ingmar Bergman faz um longa-metragem reflexivo e insuspeitamente otimista em Morangos Silvestres. Ainda que tenhamos passagens tristes, amores perdidos e um claro sentimento de final de vida, o desfecho do filme mostra uma mudança no protagonista e um calor humano que não pareciam ser possíveis no início. Funciona muito bem o arco do doutor Borg, que começa como um sujeito um tanto egoísta, autocentrado e visivelmente desgostoso com sua vida. Sua solidão vai paulatinamente sendo abandonada durante a viagem e a relação com a nora, até então apenas de respeito, vai se transformando em amizade. Ao começar a enxergar o outro, Borg muda. Da mesma forma que suas viagens ao passado o tocam profundamente.

Não funcionaria tão bem a mudança caso não tivéssemos Victor Sjöström como protagonista. Bergman escreveu o papel com ele em mente que, além de ator, foi um dos grandes cineastas da Suécia. Reza a lenda que Victor aceitou participar do filme com apenas uma condição: que estivesse em casa às 17h para tomar seu whisky diário. O desejo foi realizado e este acabou sendo o último papel do artista, que morreu em 1960, aos 80 anos. Indicada ao BAFTA, a interpretação de Sjöström é emocionante. O segredo está nos olhos do ator. Ainda que visivelmente cansado, os olhos do personagem brilham a cada viagem ao passado. Ele descobre tantas coisas durante seu trajeto que o rejuvenescimento do personagem é perceptível. A dobradinha com Ingrid Tullin é digna de elogios também.

Se Morangos Silvestres é brilhante quando está no “mundo real”, seus momentos oníricos são ainda mais interessantes. Bergman não chega a ser surreal quanto um Luis Buñuel, mas consegue imprimir nos sonhos de Borg uma carga metafórica que dá muita margem para interpretações. Desde o primeiro sonho, com a carruagem carregando um caixão, até a “aula” que recebe do seu desagradável caroneiro Sten (Gunnar Sjörberg). Ambas são projeções de preocupações que Borg sofre. Seja o final de sua vida, sejam dúvidas a respeito de sua profissão. Mesmo que encontre pelo caminho pessoas que o admiram pelo seu talento como médico – o frentista Henrik (Max von Sydow) é um bom exemplo – Borg começa a colocar muitas certezas em perspectiva, logo no dia em que receberá um prêmio pelos seus 50 anos como doutor.

Mas não são apenas de sonhos propriamente ditos que Morangos Silvestres constrói sua trama. Existem portas para o passado, sonhos acordados, que também ajudam a contar a história. A cada local que o médico passa, é como se ele abrisse uma fenda no tempo, enxergando momentos de seu passado que, de alguma forma, fizeram dele o homem de agora. Ao reencontrar seu primeiro amor, sua enérgica mãe, sua esposa em maus bocados, Isak finalmente consegue enxergar claramente fatos que até então o incomodavam. Este contato imediato com o passado o ajuda a abrir conversação com sua nora – fazendo com que descubra os reais motivos da separação momentânea entre ela e seu filho – e lhe dá chances de entender e admirar o trio de jovens que os acompanha na viagem. O fato de Sara lembrar sua paixão do passado (interpretada pela mesma atriz) facilita este movimento. Bergman não escala outro ator para viver Isak no passado. É o próprio Victor quem está ali, conversando com pessoas de seu pretérito nada perfeito.

Fotografado pelo mestre Gunnar Fischer (o mesmo de O Sétimo Selo e de tantos outros trabalhos em preto e branco de Bergman), Morangos Silvestres é um primor em todos os aspectos. Narrativa inventiva, história reflexiva e interessante, ótimos atores e um diretor cada vez mais no ápice do seu poder criativo. Uma verdadeira obra-prima.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Jornalista, produz e apresenta o programa de cinema Moviola, transmitido pela Rádio Unisinos FM 103.3. É também editor do blog Paradoxo.
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