Crítica
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Sinopse
Em agosto de 1715 o monarca Luís XIV começa a sentir dores na perna. Mesmo tentando seguir sua rotina, ele passa a ter noites intranquilas, problemas para alimentar-se e febre. Aparentemente, sua vida está acabando.
Crítica
A reinterpretação de figuras icônicas, sejam elas históricas ou extraídas da literatura, é o elemento básico que guia a obra do catalão Albert Serra. De Dom Quixote, em Honra de Cavalaria (2006), passando pelos Três Reis Magos de O Canto dos Pássaros (2008), até Casanova e Conde Drácula em seu trabalho anterior, História da Minha Morte (2013), o cineasta busca transportar seus personagens para um contexto mais próximo da realidade, com o intuito de humanizar os mitos. Tal fórmula se repete neste A Morte de Luís XIV, no qual o diretor apresenta o mais longevo monarca francês no momento que talvez melhor retrate a noção de humanidade, quando praticamente todos – personalidades notórias e pessoas comuns – se tornam iguais: o leito de morte.
Após abrir o longa com um plano que representa o último respiro de Luís XIV (Jean-Pierre Léaud) no mundo exterior, sendo levado em uma cadeira de rodas pelos jardins do palácio, Serra conduz a ação para o interior do local, confinando quase toda a encenação a um único cômodo, a suíte real, onde o protagonista passa seus últimos dias de vida padecendo devido a uma gangrena que se alastra por sua perna. A aura claustrofóbica instituída pelo diretor é realçada pela bela fotografia de Jonathan Ricquebourg, que utiliza em abundância a iluminação natural de velas e candelabros, evocando o trabalho de John Alcott em Barry Lyndon (1975). Essa escolha denota uma preocupação maior com a elaboração estética, bem como uma melhor utilização do registro digital, do que a vista em seu filme antecessor.
A rígida composição dos quadros, com o contraste provocado pelas luzes parcas nas cores dos tecidos, como o vermelho intenso dos lençóis da cama do rei, sublinha o aspecto fúnebre e soturno do ambiente. Essas imagens, em seu andamento quase estático, remetem a pinturas de artistas barrocos especialistas na técnica do chiaroscuro, como Rembrandt, Caravaggio e Georges de La Tour, e servem à ideia recorrente nos trabalhos de Serra sobre o embate entre a luz e as trevas, o Iluminismo e o Romantismo. Algo espelhado no comportamento dos médicos da Sorbonne convocados pra analisar o caso de Luís XIV, que abominam os métodos antiquados de tratamento, mas, principalmente, na própria persona do monarca, intitulado o Rei Sol, que luta contra a escuridão da morte que o envolve, simbolizada pela perna negra gangrenada.
Diferente de seus longas pregressos, nos quais sempre trabalhou com atores amadores, aqui Serra recorre a um nome consagrado como o de Léaud, ele próprio uma figura mítica da nouvelle vague francesa, para o papel principal. E é do desempenho do ator que emana grande parte da força de A Morte de Luís XIV. Mesmo limitado pelas condições físicas do personagem, que o fazem permanecer quase toda a projeção deitado, Léaud é capaz de transmitir a dor do homem que agoniza, despido de sua magnificência, e que sucumbe à melancolia. É possível sentir, em gestos e olhares, a vida esvaindo-se gradativamente, conforme o rei vai perdendo a capacidade de desfrutar dos prazeres cotidianos, como acariciar seus amados cachorros ou saborear um biscoito italiano.
Também é visível a relutância em aceitar sua condição, o orgulho ferido, mas que ainda resiste, como na cena em que manda seu criado buscar o chapéu para que possa saudar as damas da corte ou, quando em meio a um ataque de tosse, se recusa a beber água que não seja servida em uma taça de cristal. Esses detalhes caracterizam a pretendida humanização do protagonista, porém, por mais que a atuação de Léaud – com sua entrega física minimalista – seja tocante, muitas vezes ela é enfraquecida pelas situações repetitivas e pouco envolventes criadas por Serra. As tentativas de alimentar o rei, os debates entre o médico real (Patrick d'Assumçao) e o principal criado (Marc Susini), e a recusa constante dos membros da corte em enxergar o óbvio sobre o iminente desfecho, se acumulam, seguindo o ritmo letárgico particular do diretor.
Tal inércia até se justifica, já que a obra trata de um processo de morte lento e doloroso, porém, na maior parte do tempo, acaba soando como parte de um exercício de estilo que visa extrair questões filosóficas de diálogos e acontecimentos banais que, na prática, são pouco significativos. Em meio ao drama genuinamente construído de Luís XIV, parece existir um ar irônico levemente destoante impresso por Serra. Isso pode ser percebido no modo como são expostas as formalidades do universo da realeza – onde todos celebram e aplaudem qualquer mínimo gesto do rei – nas visitas dos membros do clero ou ainda na cena final da autópsia, quando os médicos garantem que “farão melhor da próxima vez”. Uma sequência que não deixa de ter seu apelo cômico, mas que passa a sensação de um indício de crítica, e de certo cinismo, que não fica claro. O que de fato fica evidente é a continuidade das pretensões formais e narrativas de Serra, buscando transformar vazios e trivialidades em digressões intelectuais que nem sempre possuem o suposto grau de profundidade por ele imaginado.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Leonardo Ribeiro | 6 |
Wallace Andrioli | 8 |
Chico Fireman | 6 |
Francisco Carbone | 9 |
Cecilia Barroso | 9 |
MÉDIA | 7.6 |
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