Morte e Vida Severina (Em Desenho Animado)
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Afonso Serpa
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Morte e Vida Severina
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2011
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Brasil
Crítica
Leitores
Sinopse
A dura caminhada de Severino, um retirante nordestino, que migra do sertão para o litoral pernambucano em busca de uma vida melhor.
Crítica
O poema Morte e Vida Severina, publicado em 1956 por João Cabral de Melo Neto, é uma das obras mais conhecidas da prolífica literatura nordestina dedicada ao drama dos retirantes da seca. O texto do autor pernambucano, antes reservado aos amantes das letras, ganhou em 2010 uma versão animada em 3D preto e branco. Dirigido por Afonso Serpa e realizado a partir dos desenhos originais do cartunista Miguel Falcão, o filme narra o percurso de Severino, que migra do sertão para o litoral em busca de uma vida melhor.
A animação em alto contraste, repleta de movimentos fluidos e com traços, riscados e rasuras que conferem textura, volume, luz e sombra ao desenho, emulando as ilustrações de cordel e o próprio teatro de sombras, atrai pelo absoluto encantamento. Autêntica, extrapola a simples tradução imagética do texto a partir de ideias criativas e de soluções poéticas, iluminando a já brilhante obra do escritor.
O filme torna-se ainda mais sensorial com a interpretação de atores nordestinos, que dão alma ao clássico do poeta, e também com a trilha de Lucas Santanna, Siba, Rica Amabis e Marcelo Jeneci, composta com sanfonas, chocalhos, violas e tambores melancólicos que ecoam a vastidão da caatinga sem se render aos clichês sonoros da região.
No audiovisual, assim como no denso livro do autor, Serevino (voz de Gero Camilo) foge da seca e da pobreza do sertão, rasgando o interior pernambucano até o Recife atrás de emprego. Seguindo em direção ao mar, contemplativo, passa por vilas grandes e pequenas...
...todas formando um rosário
cujas contas fossem vilas,
todas formando um rosário
de que a estrada fosse a linha.
Devo rezar tal rosário
até o mar onde termina,
saltando de conta em conta,
passando de vila em vila.*
O poema narrativo existencialista, marcado por um lirismo folclórico áspero e por rimas quase singelas, certas vezes cômicas, mas sempre críticas e lúcidas, denuncia o conflito agrário e a luta do sertanejo pelo seu quinhão. A disputa pela terra é tanto base do poema quanto herança histórico-cultural do Brasil contemporâneo, expressa na tragédia secular de um povo que sofre com falta de terra, comida, água e assistência.
Na crônica em verso de João Cabral de Melo Neto, que alterna monólogos e diálogos, Severino segue sua trajetória sob o sol escaldante e sobre o solo calcinado. Durante o percurso, procura trabalho enquanto encontra personagens ligados à simbologia da morte, como irmãos de almas, carpideiras e rezadeiras, que com ele analisam a vida sofrida no agreste.
— Muito bom dia, senhora,
que nessa janela está;
sabe dizer se é possível
algum trabalho encontrar?
— Trabalho aqui nunca falta
a quem sabe trabalhar;
o que fazia o compadre
na sua terra de lá?
— Pois fui sempre lavrador,
lavrador de terra má;
não há espécie de terra
que eu não possa cultivar.
— Isso aqui de nada adianta,
pouco existe o que lavrar;
mas diga-me, retirante,
que mais fazia por lá? *
Severino, que nunca aprendeu a rezar, explica suas habilidades à senhora. Porém, nenhuma delas serve à velha que vive de a morte ajudar, já que de toda a região é rezadora titular. Sem alternativa, o homem segue seu caminho. Ilustrando a aridez da vida migrante, elementos surreais e fantasmagóricos assombram o filme, como a vegetação em forma de gente a se lamentar ou a constante presença da morte, sempre à espreita sob a forma de boi em osso ou de urubu a voar. Assim, é emblemática a cena do enterro de um anônimo, na qual seu túmulo é a única terra que lhe é garantida – já que nenhuma outra é dada em vida, apenas em morte severina.
— Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a cota menor
que tiraste em vida.
— É de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
deste latifúndio.
— Não é cova grande,
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.
— É uma cova grande
para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo.
— É uma cova grande
para teu defunto parco,
porém mais que no mundo
te sentirás largo.
— É uma cova grande
para tua carne pouca,
mas a terra dada
não se abre a boca. *
Severino apressa o passo para chegar ao Recife, onde escuta a conversa de dois coveiros que falam sobre o incessante trabalho que lhes dão todos os retirantes que deixam o sertão para morrer na cidade:
- Gente sem instituto,
gente de braços devolutos;
são os que jamais usam luto
e se enterram sem salvo-conduto.
— É a gente dos enterros gratuitos
e dos defuntos ininterruptos.
— É a gente retirante
que vem do Sertão de longe.
— Desenrolam todo o barbante
e chegam aqui na jante.
— E que então, ao chegar,
não têm mais o que esperar.
— Não podem continuar
pois têm pela frente o mar.
— Não têm onde trabalhar
e muito menos onde morar.
— E da maneira em que está
não vão ter onde se enterrar. *
Ao final do poema, sem saber se é melhor morrer ou viver, Severino depara-se com o nascimento de uma criança que, apesar do futuro não promissor, simboliza o eterno embate entre vida e morte. Dessa forma, João Cabral de Melo Neto fecha um ciclo, invertendo o conceito sugerido no título de sua obra, no qual a morte aparece em primeiro lugar. Porém, apesar do indício de esperança apresentado pelo autor, a animação aposta mais alto na angústia, mostrando Severino em sua jornada incompleta a correr, correr e correr sobre a terra em direção a...
* Trechos do original de João Cabral de Melo Neto
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