Crítica
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Sinopse
De férias no Egito, o investigador Hercule Poirot conhece a riquíssima herdeira Linnet Ridgeway, e recebe um convite para a festa de casamento dela. Os noivos decidem levar um grupo de amigos a bordo de um passeio pelo rio Nilo, num barco particular. No entanto, quando uma morte ocorre no interior da embarcação, Hercule precisa descobrir o responsável pelo crime.
Crítica
Morte no Nilo (2022) se inicia com uma combinação inesperada de sexo e morte. Os dois elementos se encontram em registro mais intenso do que na média das produções voltadas ao público amplo, e conhecidas pelo caráter pudico. Primeiro, o jovem Hercule Poirot (um Kenneth Branagh rejuvenescido digitalmente) perambula pela guerra de 1914-1918 em preto e branco, descobrindo cadáveres e terminando o prólogo numa imagem digna de filmes de terror. Em seguida, cerca de vinte anos depois, Jacqueline de Bellefort (Emma Mackey) e Simon Doyle (Armie Hammer) dançam numa pista, em meio a dezenas de convidados. As posições são tão explicitamente sexuais, com direito a gemidos e respiração ofegante, que poderiam chocar os rígidos costumes da aristocracia dos anos 1930 — mas não chocam. Talvez a principal ousadia desta reconstituição seja a abordagem desaforada das pessoas que se desejam e se odeiam em igual medida, afirmando-o de maneira explícita uns aos outros. A riquíssima herdeira Linnet Ridgeway (Gal Gadot) afirma em voz alta aos colegas que pretende finalizar a assinatura de documentos para ir logo ao quarto e fazer sexo com o marido. Uma mãe vigia o interesse amoroso de seu filho, e os ex-namorados e paixões rejeitadas se multiplicam a bordo. Todos se analisam, se medem e interferem na atividade libidinosa alheia. Há um potencial erótico surpreendente no barco que navega pelo Egito.
Em paralelo, o diretor Kenneth Branagh elabora uma cuidadosa ambientação. O espectador escuta e observa inúmeras menções a um assassinato antes de qualquer crime acontecer: cita-se o medo de tiros, a possível morte no futuro, o fato de serem “todos culpados”. Nas águas, crocodilos pulam e devoram outros animais; na terra, serpentes voam diretamente ao rosto da protagonista; e no templo, pedras caem sobre o casal apaixonado. Revela-se um revólver escondido na bolsa e declara-se a intenção de vingança da jovem traída pela melhor amiga. A produção consagra tempo considerável não apenas a sugerir a culpabilidade de cada viajante (algo fundamental no whodunnit, e comum às adaptações de Agatha Christie), como também a criar uma atmosfera de perigo via estética e simbologias. O assassinato perde o caráter de surpresa, que nunca funcionaria caso se pretendesse abrupto (é evidente que alguém morrerá para que Poirot utilize o talento de investigador). Os criadores percebem ser melhor aprofundar a aparência de suspense do que ocultar a reviravolta previsível — somos avisados do assassinato com insistência, até ele de fato se concretizar. Isso permite diluir o choque em nome de um dispositivo mais tóxico e complexo: quando o ato se consolida, o espectador já terá descoberto uma série de conflitos pessoais tão importantes quanto o silenciamento misterioso.
Assim, esta adaptação demonstra maior interesse pela construção dos personagens do que havia mostrado Assassinato no Expresso do Oriente (2017), também dirigido por Branagh. Ali, incomodava a estereotipia dos passageiros do trem, dotados de subjetividades limitadas. Desta vez, os produtores percebem que nosso interesse pela morte de alguém (e pelo perigo dos demais) está condicionada ao conhecimento de seus gostos e objetivos, e à identificação com suas histórias. A mudança de espaços faz bem ao cineasta: a trama anterior, dentro de um trem em movimento, sofria com a dificuldade de filmar em corredores estreitos e compartimentos pequenas, nos quais a câmera nunca parecia à vontade. Desta vez, com a ajuda de muitos efeitos visuais, a embarcação será filmada de fora, num olhar onipresente, passeando pelos andares e deslocando-se junto a cada convidado, de um lado para o outro. Agora, o diretor de fotografia Haris Zambarloukos consegue utilizar os vidros espelhados e semitransparentes para efeito poético, além das persianas semicerradas para sugerir a interação misteriosa nas cabines. Ainda que as projeções em chroma key estejam distantes de um resultado discreto (a elegância de cores e texturas beira o kitsch), elas satisfazem dentro da perspectiva de uma aristocracia decadente e monstruosa.
O elenco comporta nomes acostumados com a farsa, e outros que surpreendem neste registro. Emma Mackey, atriz conhecida sobretudo por Sex Education (2019-2021), está excelente no encontro entre loucura e pesar que constitui a marca de Jacqueline de Bellefort. Letitia Wright, Sophie Okonedo e Annette Bening desempenham com naturalidade os papéis próximos da caricatura (as duas primeiras, da mulher negra sulista, e a última, da mulher respeitada e arrogante), enquanto Armie Hammer, para além de controvérsias extrafílmicas, comprova o talento que vinha posicionando-o como figura de predileção em grandes projetos da indústria. Branagh novamente encarna um Poirot canastrão e extravagante, autorizando desta vez uma série de críticas à vaidade do personagem, equilibradas com a intromissão de um raro interesse amoroso. A única peça destoante seria Gal Gadot, atriz tão popular quanto limitada em termos de recursos dramáticos — ela se revela incapaz de transmitir a malícia e o hedonismo necessários a Linnet Ridgeway. Os criadores percebem que o barco representa um microcosmo dentro do qual se inserem diversos tipos sociais: patrões e empregados; nascidos na riqueza ou tendo conquistado a fortuna na fase adulta; pessoas brancas, negras e asiáticas; figuras heterossexuais e homossexuais. O roteiro nada mais faz do que confrontar estes grupos ao limite da explosão, algo de que os intérpretes possuem plena ciência ao encarnarem arquétipos precisos, porém rompendo com versões nocivas de minorias raciais, de gênero e sexualidade.
Por fim, Morte no Nilo apresenta um desfecho excelente para um thriller — aquele que soa inesperado, porém o único realmente plausível quando se concretiza. Aos fãs de Agatha Christie, resta o conforto de uma conclusão fiel às surpresas criadas pela autora. A todos os outros, existe o prazer de buscar o assassino numa lista onde uma dúzia de homens e mulheres seriam candidatos ao posto. Para além de encontrar o responsável, este mosaico interessa pela perspectiva de que todos eles, sem exceção, teriam motivos para eliminar a jovem rica, alegre, e generosa. Há um notável aspecto de vingança social por parte dos passageiros, perturbados pela ostentação cordial e passivo-agressiva de Linnet. Eles não se voltam apenas contra uma personagem de sorrisos fáceis, mas contra um setor inteiro da sociedade, cuja extravagância soa ainda mais violenta num período pós-guerra e pós-crash de 1929. Situado no intervalo entre a primeira e a segunda guerra mundial, o filme consegue transmitir uma impressão de perigo no horizonte, que coincidiria com a ascensão do nazismo. Predadores se devoram nos arredores ao passo que as pessoas se destroem no alegre passeio de lua de mel. Visto enquanto alegoria de um recorte histórico preciso, ao invés de mera tragédia entre indivíduos fictícios, o resultado adquire significado bastante interessante.
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