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Sinopse

Sob o céu em chamas numa beira de estrada do litoral cearense, o Motel Destino é palco de jogos perigosos de desejo, poder e violência. Uma noite, a chegada do jovem Heraldo transforma em definitivo o cotidiano do local.

Crítica

Aparentemente destinado à tragédia, Heraldo (Iago Xavier) precisa se agarrar a tudo que garanta a sua sobrevivência. Prestes a completar 21 anos de idade, ele recebe a missão de, junto com o irmão mais velho, assassinar um francês que sacaneou a chefona da criminalidade local. Desde essa introdução há uma camada de irrealidade em Motel Destino, vide o figurino metalizado do protagonista e a visão estilizada de uma bandidagem tropical marcada por capangas de sunga ostentando armas de grosso calibre. Esse compromisso simbólico que o cineasta Karim Aïnouz assume fica ainda mais evidente quando a fatalidade obriga Heraldo a se refugiar num motel de beira de estrada, local transitório que pode ser encarado como um purgatório. Nele, o rapaz se sentirá ora protegido dos inimigos, ora tragado para o centro de um redemoinho de sensualidade e perigo. Aliás, antes que uma morte decrete, ao mesmo tempo, a tristeza e necessidade de escapar, Heraldo desvia da responsabilidade para atender ao desejo, encantado pela malandra que o atrai para uma armadilha. Novamente: desejo e perigo, os principais vetores desse drama ardente rodeado de sensualidade por todos os lados. Enquanto se acostuma ao estabelecimento administrado por Elias (Fábio Assunção) e sua esposa, Dayana (Nataly Rocha), Heraldo nem consegue tempo para elaborar o próprio luto. Sua estadia no motel Destino alegoriza a morte atravessada pelo desejo e vice-versa, em meio à qual o irmão vira flashes de memória em filme.

Nesse cenário brega afetado, repleto de cores quentes e corpos suados, Heraldo transita por um corredor extenso com janelinhas que dão acesso visual aos quartos. Do ponto de vista prático, são aberturas que servem para a comunicação entre funcionários e clientes, como quando há uma solicitação da cozinha ou algo dessa natureza. Mas, é bom estar atento para o que significam essas pequenas fendas na parede escancarando a intimidade alheia. E quem oferece a chave à compreensão disso é Elias, proprietário do motel Destino. Em determinado ponto da trama, ele mostra a Heraldo que tem o costume de se excitar observando os outros transando, claramente cometendo um sério delito de privacidade, mas consciente de que enxergar sem ser visto neste caso é a manifestação de um olhar dominante. Não à toa, mais à frente, quando não tem ninguém testemunhando a sua ousadia, o protagonista reproduz esse gesto, ou seja, abre uma janelinha e se transforma no voyeur que goza ao observar impunemente. Com isso, reivindica uma posição no lugar, assim como na hierarquia do triângulo que vai se formando aos poucos. É importante perceber que, mostrando ao novato o seu segredo, Elias o convida indiretamente a imitá-lo, a assumir o seu lugar, atitude repetida no oferecimento da esposa como isca para satisfazer os próprios desejos homossexuais. A indignação com o adultério é pura performance.

Aliás, o personagem de Fábio Assunção é um dos mais interessantes de Motel Destino. Dono desse lugar kitsch onde ecoam incessantemente os gemidos de prazer (que poderiam facilmente ser confundidos com manifestações de dor), ele atua para manter a prioridade patriarcal, tanto que Dayana precisa o lembrar de que também é dona do estabelecimento. Karim Aïnouz mostra Elias teatralizando uma masculinidade agressiva, mas não escondendo/contendo os desejos sentidos pelo rapaz que pede guarida sob o teto multicolorido. O querer é transbordante nesse longa-metragem que concorreu à Palma de Ouro no Festival de Cannes 2024, a força imparável que não pode ser retida, sequer pelos limites convencionais da sociedade. O cineasta orquestra habilmente uma ciranda febril de erotismo e risco, reforçando a indisposição com o realismo. Ele aposta na abordagem alegórica para construir um filme no qual os sentimentos extremos são representados para além do que a veracidade pode dar conta. Herdeiro direto dos personagens de Karim Aïnouz em busca de fuga, como a Hermila de O Céu de Suely (2006), Heraldo é também um discípulo de outras figuras que o cinema apresentou como avassaladores vetores eróticos capazes de desestabilizar o meio, como em Teorema (1968), de Pier Paolo Pasolini, no qual um forasteiro chacoalha os pilares da família tradicional. Mas aqui o ideal familiar já é disfuncional.

Porém, a história na qual o filme mais evidentemente busca elementos referenciais é O Destino Bate à Sua Porta, livro de James M. Cain – levado oficialmente ao cinema, num par de produções norte-americanas homônimas, lançadas em 1946 e 1981, e duas vezes extraoficialmente, na italiana Obsessão (1943), de Luchino Visconti, e na brasileira Porto da Caixas (1962), de Paulo César Saraceni. Dele, Karim Aïnouz reaproveita a ideia do forasteiro envolvido com a esposa do dono de um estabelecimento até a conclusão de que é preciso assassinar o mandachuva local para o amor triunfar. Será? De todo modo, o cineasta cearense não se foca tanto no suspense e na perversidade, mantendo-se leal ao desejo como fiel da balança. Elias não é simplesmente o homem que precisa ser tirado do caminho, nem Haroldo é apenas o possível promotor da alforria de uma esposa maltratada. Tampouco Dayana é unicamente a cônjuge fragilizada pela opressão recorrendo ao pecado para vislumbrar um futuro menos opressor. Os personagens são mais complexos dentro da representação figurada de o quê e como desejam. Os três são Indivíduos assemelhados pelo desespero, sentimento acentuado pela estética calorosa. Motel Destino não é uma tentativa de reproduzir a realidade. Trata-se de um sonho excessivo que assimila clichês atribuídos ao tropical (cores saturadas, suor, sexualidade) como ponto de partida das alegorias.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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