Crítica
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Sinopse
Em Stadtallendorf, cidade alemã com um histórico complexo de exclusão de estrangeiros, o professor Dieter oferece aos alunos, ao menos, algumas chaves para que eles possam chamar seus lugares de lar.
Crítica
Aulas de matemática, história, geografia, línguas, educação artística, educação física. A divisão em disciplinas e a estruturação do conteúdo programático deve soar como única possibilidade de ensino para tantos adultos que cresceram imersos numa concepção tradicional da sala de aula. No entanto, alguns países acreditam em formas diferentes de aprendizado: a Finlândia se destaca por experiências onde são abolidas as provas, por exemplo. Já na pequena cidade de Stadtallendorf, na Alemanha, o professor Dieter Bachmann acredita que os saberes coincidem com a prática do afeto, das artes e do conhecimento unificado. Uma aula deste senhor para os alunos do 6º ano inclui músicas de John Lennon, lições de gramática, colagem de revistas, pausas para o cochilo, conversas sobre a imigração e equações matemáticas. Os alunos são encorajados a falar de suas vidas pessoais e suas emoções, podendo sugerir o próximo tema que desejam estudar. A noção de hierarquia se dilui através do conceito de sala de aula onde o conteúdo é ensinado de maneira coletiva, enquanto processo ao invés de um saber predefinido.
Mr. Bachmann and His Class (2021) retrata um ano de estudo dentro desta proposta pedagógica, acompanhando uma única turma ensinada pelo professor e seus assistentes. O tempo estendido de convivência com os pré-adolescentes permite que a câmera não se converta num elemento intrusivo: nenhum aluno aparenta se comportar de maneira artificial para as câmeras, e o professor tampouco adquire uma postura mais formal para as necessidades do filme. O olhar quase onisciente da diretora Maria Speth salta entre os rostos de todos os alunos, atentando-se aos rabiscos nos cadernos, os movimentos com as mãos, as pequenas fofocas no fundo da sala. Ela evita promover uma defesa deste método didático, preferindo descobrir a sua existência durante as filmagens: o projeto possui o mérito de chegar à sala de aula sem julgamentos morais, nem mensagens específicas a transmitir a respeito da situação do ensino na Alemanha. Adota-se o “documentário de observação”, termo redutor para uma forma complexa de se posicionar próximo ao tema filmado, porém intervindo o mínimo possível na dinâmica natural. Frederick Wiseman seria o referencial mais conhecido para este tipo de abordagem humana, mas não antropológica.
Aliás, o trabalho do cineasta americano vem à mente em inúmeras cenas: seja pelo início com o amanhecer na cidade (escolha de todas as produções recentes de Wiseman), pelo foco nas instituições ou pelos cortes invisíveis entre diferentes tempos e espaços. Recursos explicativos, incluindo letreiros, narração em off e entrevistas para a câmera são excluídos desta concepção de cinema. O dispositivo representa seu tema por meio da cumplicidade: Speth, a câmera e, por extensão, o espectador, se tornam alunos suplementares. Quanto às vidas pessoais das crianças e do professor, a cineasta se interessa apenas pelas questões refletidas organicamente durante as aulas, a exemplo da briga com uma aluna muçulmana devido à mesquita que frequenta, a nova aluna turca com dificuldades de aprender o alemão e a decisão de uma mãe em se mudar para nova cidade, o que implicaria na saída de uma jovem. O filme se mantém distante das casas, fazendo uma rápida incursão pelas horas de descanso de Bachmann – e mesmo assim, apenas quando se encontra com os amigos, discutindo técnicas pedagógicas. Existe pudor e respeito pela intimidade dos personagens que oferecem sua imagem e histórias pessoais com tamanha humildade.
O documentário parte desta sala de aula para efetuar o retrato amplo de uma Alemanha multicultural. A maioria dos personagens nasceu em países estrangeiros ou possui pais imigrantes. As crianças têm origens turcas, búlgaras, italianas, russas, romenas. Por isso, quando visitam um Museu relembrando que Stadtallendorf manteve uma importante fábrica de bombas para Hitler, escutam a lição com seriedade. O professor estimula os jovens a se orgulharem de suas culturas de origem, enquanto respeitam as demais. O caldeirão religioso, linguístico e político representa um benefício ao aprendizado: vide a decisão de banir carne de porco dos cardápios, devido à quantidade expressiva de alunos muçulmanos, as menções respeitosas ao Corão e às crenças ortodoxas. Bachmann discute política, homossexualidade e presença de símbolos religiosos em espaços públicos – sinal de que o país europeu se encontra a anos-luz de um Brasil conservador, onde ainda surgem falácias como o Kit gay e a Escola sem partido. O aspecto mais interessante deste método reside na crença de que escolas devem formar cidadãos pensantes, não profissionais para o mercado de trabalho. As crianças crescem com capacidade de discussão e senso crítico, além de conhecimento notável da História.
Apesar das qualidades, Mr. Bachmann and His Class é seriamente prejudicado pela duração: são 3h40 de imersão no cotidiano escolar. Wiseman, também conhecido pelos documentários extensos, efetua panoramas amplos diante dos quais a proporção se justifica. No caso do filme alemão, o andamento se torna repetitivo, e contraproducente para uma obra que discute a didática e a comunicação. Este é mais um caso clássico em que a diretora assume a montagem, sendo incapaz de abrir mão de belas cenas em nome de um resultado mais potente. Documentários do gênero, cuja forma nasce durante o período de montagem, necessitam de olhares externos capazes de sacrificar passagens interessantes em nome do significado e do alcance da obra. Devido a este formato inchado, o projeto politicamente relevante e tecnicamente competente certamente será visto por um número restrito de pessoas. A versão apresentada durante o Festival de Berlim aparenta ser um ótimo primeiro corte, que mereceria refinamento visando resultado mais enxuto. Às vezes, a paixão por um tema e pelo material pode cegar diretores talentosos, mais apegados ao processo do que ao resultado nas telas.
Filme visto online no 71º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em março de 2021.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Bruno Carmelo | 7 |
Ailton Monteiro | 9 |
Chico Fireman | 8 |
MÉDIA | 8 |
Bastante atenta sua crítica, a acompanho em quase quase tudo. Fiquei com uma curiosidade, e uma discordância. A curiosidade é motivo da afirmação "mas não antropológica" - na verdade, achei que o filme, como outros tantos casos de cinema direto, poderia ser considerado uma etongrafia audiovisual. A discordância é sobre a duração. O centro da abordagem do professor Buchmann é a paciência. Não entenda as pessoas rápido demais. Não tenho muita dúvida que a diretora sabe que poderia "apresentar" os alunos, o professor, e através deles o contexto, na metade do tempo. Mas e o processo de ajustarmos nossa sensibilidade a essa experiência de longa duração, tão avessa aos nossos padrões atuais de "performance" e "informação"?
Excelente crítica para um documentário que é relevante, mas que tem na longa duração um considerável ponto fraco.