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Sinopse

A segunda edição do concurso Mr. Leather Brasil está sendo disputada por Dom PC, Kake, Deh Leather e Maoriguy. O vencedor recebe a faixa pelas mãos de Dom Barbudo, o primeiro Mr. Leather do país, e terá como tarefa divulgar a cultura do couro durante o próximo ano. O concurso está mexendo com os ânimos da comunidade fetichista gay de São Paulo.

Crítica

Exibido dentro de um festival segmentado, voltado à produção de temática LGBT, Mr. Leather dedica-se a lembrar que existem muitos guetos dentro do gueto. No interior da comunidade gay encontram-se os fetichistas, dentro dos quais se situa o grupo do BDSM e dos amantes do couro. Esta não é apenas uma “preferência” ou um estilo de roupas, e sim um modo de vida: estamos falando de homens que vivem para colecionar roupas de couro, praticar o bondage, encontrar-se em bares específicos ao grupo, enquanto sonham em assumir a coroa de Mr. Leather Brasil após o triunfo de Dom Barbudo em 2017. Eles amam o cheio do couro, a aparência do couro, o barulho do material em movimento, o sexo com outros homens vestidos em couro.

Um aspecto positivo do documentário dirigido por Daniel Nolasco se encontra no fato de retratar este grupo de maneira ao mesmo tempo respeitosa e bem-humorada. O respeito se imprime por meio olhar cúmplice à rotina dos candidatos ao posto de Mr. Leather, deixando que digam o que quiserem sobre esta prática, sua evolução dentro da comunidade, sua relação com a sexualidade e a identidade. Os personagens tratam o couro com respeito, mas também buscam tornar sua apreciação compreensível aos neófitos, razão pela qual grande parte das conversas se transforma num bate-papo amigável com a câmera. Quanto à leveza, ela é imprimida especialmente pela montagem, que sublinha a quantidade impressionante de peças de couro no armário, o prazer destes homens em se vestir e desvestir com a peça, e mesmo uma única sessão BDSM comandada por Barbudo. Existe evidente distanciamento deste mundo por meio do humor.

O diretor se mostra particularmente bem-sucedido na criação de uma estética kitsch muito apropriada a este universo. Dos letreiros gigantescos à trilha sonora, ele passa por uma apresentação fictícia deste mundo: “Bem-vindo à ilha da fantasia!”, exclama nosso “anfitrião” ao lado de um rapaz em couro e posição de cachorro. As imagens são exuberantes, operísticas, reforçando o caráter de Dom PC, Kake, Deh Leather e Maoriguy como personas de si mesmos. Enquanto o aspecto documental destrincha os homens por trás das roupas, a ficção mergulha orgulhosamente nos personagens encarnados por eles. Esta fricção de registros se traduz em estéticas opostas, ou seja, a luz muito bem cuidada para a apresentação dos candidatos enquanto os depoimentos se assemelham à captação amadora. O projeto inclusive cita o personagem Tom of Finland, importante fonte de inspiração aos protagonistas, enquanto critica o filme recente destinado ao mesmo, num shade irreverente, e condizente com a proposta.

Alguns aspectos prejudicam a fluidez de Mr. Leather, no entanto. A saborosa parte fictícia desaparece no decorrer da trama, cedendo lugar ao documentário mais tradicional, e a insistência em retratar o bar onde estes homens se encontram (incluindo dois passeios pela casa noturna vazia, com foco no logotipo) beiram o vídeo institucional. As cenas de rádio focada no BDSM também se aproximam do aspecto promocional. Curiosamente, enquanto se distancia da propaganda do Leather por meio do humor, o filme não efetua o mesmo caminho em relação às marcas citadas. Além disso, o discurso jamais questiona a admiração destes homens gays por símbolos sociais heteronormativos, e muitas vezes homofóbicos, a exemplo dos militares, das guardas republicanas e mesmo dos nazistas, cuja peça de vestuário é guardada com carinho por um dos entrevistados. O filme ganharia muito em dar um passo atrás e se questionar sobre a constituição psicológica do grupo.

Ao final, o projeto terá conquistado a difícil tarefa de tornar uma prática tão marginalizada acessível ao grande público, oferecendo uma ponte ao mundo dos fãs inveterados do couro. Nolasco consegue falar de sexo de maneira pontual, sem fugir ao tema nem fetichizá-lo, enquanto lança a importante questão da segregação interna de membros da comunidade LGBT. Infelizmente, o aguardado ápice da narrativa – o resultado do concurso – é filmado de maneira anticlimática, sem o momento do anúncio do vencedor, por algum motivo desconhecido. Em paralelo, percebe-se o esforço da câmera em ocultar o fato que o bar-sede do concurso se encontra bastante vazio, o que ressaltaria a marginalidade destes personagens. Ainda assim, numa mistura de atenção, curiosidade e carinho, o filme retira do fetiche sexual sua aura pejorativa e situa-o numa narrativa acolhedora e solar.

Filme visto no 27º Festival Mix Brasil de Cultura da Diversidade, em novembro de 2019.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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