Crítica
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Sinopse
Natalie e Kevin formam um casal em crise após uma traição da esposa. Em busca de recomeço, mudam-se para uma casa a preço reduzido porque os antigos moradores foram mortos no local. Aos poucos, descobrem que o imóvel guarda outros segredos.
Crítica
Existe um tipo de terror cujo alvo se encontra no sonho americano. Nestes projetos, parte-se do paraíso ao inferno: um belo casal se muda para uma casa ainda maior, com filhos ou animais, procurando uma vida mais confortável. O trabalho vai bem, o local possui espaço de sobra. Aos poucos, descobrem que o imóvel é atormentado por fantasmas, bruxas, psicopatas ou pela memória de assassinatos. O relacionamento se desgasta, a dedicação profissional se torna inviável. A família patriarcal desmorona diante dos nossos olhos, numa mistura entre paranoia e perigo real. Há um prazer perverso em destruir o ideal de vida no subúrbio norte-americano, entregando aos pobres heróis/mártires a responsabilidade de lidarem com algo que não lhes dizia respeito: crimes do passado, fantasmas seculares. O roteiro pune os moradores por obterem com relativa facilidade tudo aquilo que todos gostariam de ter: uma casa própria espaçosa, um marido ou uma esposa atraente, um carro, uma família. Ao invés de sugerir que o sonho não existe, insinua que ele pode ser perigoso: se voar perto demais do sol, você pode queimar as asas e cair no chão. É isso que acontece com Natalie (Ashley Greene) e Kevin (Shawn Ashmore) em Mudança Mortal (2021). Casa incrível, preço acessível, o empreendimento dela funcionando milagrosamente. Logo, os planos dão errado.
Acadêmicos deveriam estudar a psicologia destes personagens que, sabendo de uma catástrofe ocorrida no casarão suntuoso, decidem se mudar mesmo assim. Os protagonistas vão de encontro ao perigo, oferecendo-se inconscientemente à morte – seria essa a faísca necessária para resgatar o casamento em crise? Embora confrontados a portas que se abrem sozinhas, objetos movendo-se pelos cômodos e mãos assustadoras nos corredores, permanecem na residência. Natalie e Kevin cogitam se mudar, chamam a polícia, percorrem os corredores com facas na mão. Entretanto, mantêm os grandes vidros descobertos e as portas parcialmente abertas. O carro é queimado, mas continuam no lar. Há tentativas de intimidação e violência, porém ficam onde estão. Seria este o desfecho irônico sonho americano: ser controlado por suas posses, impossibilitado de partir, numa versão capitalista e branda de O Anjo Exterminador (1962)? Endividados devido à compra, eles sequer podem pagar por um quarto de hotel. Parasita (2019) e Invasores (2015) embutiam na arquitetura da casa a possibilidade de um labirinto fagocitando seus moradores. O cineasta Peter Winther possui ambições mais modestas: ele filma a casa em dois ou três ângulos repetidos por cômodo, evitando explorar a geografia. De qualquer modo, os heróis buscam a morte. Se o olhar da direção pode ser considerado sádico, aquele dos personagens seria masoquista.
O autor acrescenta outras ferramentas de perversidade à mistura: o slut shaming e o gaslighting, ou seja, a acusação moralista contra a sexualidade livre da mulher, e as insinuações de que seria louca e, portanto, digna de menosprezo. O principal motor de conflito se encontra na infidelidade de Natalie, buscando redenção junto ao marido. A estilista amadora recebe inúmeras acusações de Kevin, de um policial e da própria mãe a respeito de sua conduta. Enquanto isso, testemunha fenômenos sobrenaturais que ninguém mais vê, gerando o diagnóstico de delírio e histeria. O marido passa os dias ao lado de uma bela companheira de faculdade, no entanto, jamais cede à tentação. Já a esposa, pecadora, recebe como punição a visita destas criaturas terroristas por definição, porque poderiam facilmente matá-la, mas preferem mudar uma bola de tênis de lugar e ligar a vitrola (a entidade adora a canção “After You’ve Gone”, com Leigh Wulff e Kevin Martin). O diretor nunca sabe ao certo se transforma o adversário num ser invisível, numa sombra mortal, num monstro à japonesa, com os cabelos cobrindo o rosto e se arrastando pelo chão, ou ainda um fantasma ou psicopata. Pouco importa: as ameaças se dirigem à mulher adúltera que mantém contato com o amante. Considerando a irmã de Natalie, sua mãe e a antiga moradora da casa, percebe-se uma visão depreciativa das figuras femininas de caracterização irresponsável, egoísta ou ingênua.
Além da misoginia, a obra incomoda pelos acontecimentos improváveis. Winther aposta em sucessivas reviravoltas, enfraquecendo o resultado a cada surpresa. A Netflix possui em seu catálogo outra história de terror onde criaturas ameaçam uma família após a traição da esposa: À Espreita do Mal (2019). Naquele caso, os fatos também se empilhavam aleatoriamente, enquanto compartimentos secretos no lar escondiam oponentes. Em Mudança Mortal, as subtramas dos supremacistas brancos, do envenenamento, do falso anúncio prometendo o fetiche do estupro, da filmadora caseira pouco utilizada, e de adversários invisíveis em câmeras de segurança se tornam incompatíveis com a jornada dos protagonistas. As revelações do terço final contradizem as provas sustentadas até então – ao contrário de juntar os indícios num quebra-cabeças completo ao final, as peças não se encaixam. Algumas cenas se aproximam da comédia involuntária – caso da tesoura convenientemente deixada no chão, para ser utilizada durante um ataque; das mensagens de texto de origem duvidosa; do dia a dia exaustivo desta criadora de moda que nunca vemos trabalhar de fato; do curso exigente de um marido que jamais estuda, e da profissão consistindo em limpar cenas de crime, surtindo impacto nulo neste homem. Para o roteiro, ele poderia ser sapateiro ou lixeiro, tanto faz. Os cônjuges possuem amigos ou familiares – o texto se mostra incapaz de conceber os dois em paralelo.
A obra possui determinadas ambições estéticas dignas de nota: o diretor de fotografia Tom Camarda aposta nas lentes grande-angulares distorcidas, aludindo ao ponto de vista deturpado da mulher, em conjunção com planos longos, de coreografias exigentes (vide o desfecho). Winther privilegia o medo analógico de portas rangendo e objetos desaparecendo ao invés de saturar o percurso com efeitos especiais. A maquiagem, apesar de fraca, revela a escolha por um terror psicológico: as fobias surgem da psique destes indivíduos em crise. Infelizmente, este ponto de partida se converte num enésimo torture porn à contemporânea, substituindo o estupro literal da mulher pela chantagem emocional, a manipulação e a tortura psicológicas – abordagem que encontrou seu ápice em Mãe! (2017). Para piorar o cenário, Ashley Greene e Shawn Ashmore possuem dotes dramáticos limitados: ela arregala os olhos o tempo inteiro, ele evita qualquer variação de registro. Os coadjuvantes são mal dirigidos ao limite da comédia involuntária, a exemplo de Robert (Alexander Bedria), Sarena (Soraya Kelley) e Otto (Jason Liles). As raras tentativas de elevar este produto acima de uma produção nível B se diluem no conjunto, sobretudo nos últimos vinte minutos. O embate entre Natalie e um inimigo, rumo à conclusão, desperta dúvidas sobre a aprovação do roteiro por onze produtores, pela equipe e pelo elenco. A Netflix ainda soterra a aparência de seriedade do filme ao trocar o original Aftermath (algo como “Em consequência”) por Mudança Mortal, despertando a impressão de que os personagens serão soterrados por um caminhão transportando móveis ou algo do tipo. Pensando bem, talvez essa fosse uma ideia melhor.
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Eu queria ler uma crítica sobre o filme... Enredo, produção, fotografia... Não uma opinião enviesada cheio de militância. Papo de Cinema abre as portas pra esse tipo de conteúdo? Bizarro.
Gostaria de saber qual o nome da música que toca no vinil do filme mudança mortal.
No início do filme diz que o mesmo é 'inspirado em fatos reais'. Gostaria de saber que fatos seriam estes. Não achei nada sobre isso na internet.