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Sinopse

Depois da Segunda Guerra Mundial, duas famílias entrelaçam suas histórias vivendo no delta do Rio Mississippi. Juntas, elas enfrentam uma hierarquia social bárbara numa paisagem implacável. Ao mesmo tempo, lutam uma batalha em casa e outra no exterior.

Crítica

Um idoso racista que não sabe soltar uma palavra de carinho nem para a própria família. Uma mulher, branca, que vive desiludida no isolamento. Seu marido, da mesma cor, um fazendeiro com problemas no campo. Do outro lado, um negro que sonha em ter suas próprias terras. Sua esposa, alguém que cria os filhos para irem além daquela vida isolada. Das duas famílias, dois jovens são convocados para lutar contra os alemães e retornam com traumas, cada um à sua maneira. Personagens que vivem no mesmo local, uma propriedade no interior dos EUA, num Mississipi dominado pelo racismo. O contexto é a Segunda Guerra Mundial e como o antes e depois dela não alteraram em nada a questão do preconceito no país norte-americano. Mudbound: Lágrimas Sobre o Mississippi foi ovacionado no Festival de Sundance deste ano. Não é para menos. O longa-metragem de Dee Rees adapta o romance homônimo para fazer uma das críticas mais ferozes à questão racial no chamado país de Primeiro Mundo. Principalmente, como essa alcunha esconde graves problemas no âmbito social e político.

A diretora não atropela a configuração daquele cenário e de suas personagens. Aos poucos, e nas palavras dos próprios, vamos conhecendo suas vidas e seus sentimentos pelo que acontece ao redor. Após uma breve cena inicial que traz um enterro, seguimos à compreensão da história que está por vir. Laura (Carey Mulligan) é uma mulher culta, ainda que com limitações, formada em Pedagogia. Ela casou sem paixão, apenas como válvula de escape de uma vida estagnada, com Henry (Jason Clarke), o fazendeiro que não sabe fazer negócios e acaba indo parar numa terra arruinada pela chuva constante, em que a lama toma conta. Além das filhas, o pai dele, Pappy McAllan (Jonathan Banks), também está lá, mais como estorvo do que como uma presença prazerosa. Quem loca um pedaço daquela terra são os Jacksons. Hap (Rob Morgan) trabalha noite e dia para os McAllan a fim de juntar dinheiro. Logo, sua esposa, Florence (Mary J. Blige), começa os serviços de cozinheira e faxineira na casa daquela família para ajudar no sustento. O clima entre patrão e empregado que, a princípio, começa leve, fica tenso com o retorno dos heróis do conflito global.

Jamie (Garrett Hedlund), irmão de Henry, volta da Segunda Guerra Mundial como qualquer soldado que só enxergou morte à sua frente. Sem conseguir dormir ou falar sobre o assunto, ele se torna alcóolatra, além de despertar a atenção de Laura, tão acostumada com a brutalidade do marido, mas que enxerga no cunhado boas intenções. Este logo se torna amigo de outro sobrevivente do conflito global. Ronsel (Jason Mitchell), filho de Hap e Florence. É claro que, por ser negro, seu retorno não é tão cheio de boas-vindas. Se na Alemanha ele era tratado de igual para igual, tanto entre os amigos soldados quanto entre os próprios civis europeus (inclusive com direito ao amor de uma prostituta ruiva), no Mississipi ele é maltratado já na chegada. Quando vai a uma loja comprar presentes e comida para a família, é impedido de sair pela porta da frente pelo simples fato de ser de outra cor. Ele enfrenta de forma sábia com as palavras. “Enquanto nós ficávamos na linha de frente e derrotamos Hitler e os alemães, vocês estavam são e salvos em casa.” O problema é que seus algozes são ninguém menos que os McAllan. É o início do pavio que vai causar a explosão mais à frente do longa.

Com o fluxo narrativo interligado, as histórias desses personagens se entrecruzam para contar uma história de preconceito racial e também de misoginia. Um trabalho de montagem muito acima da média, provavelmente, o melhor de 2017 até agora, por costurar tão bem roteiro e imagens. Neste interim, a guerra perpetuada por Hitler acaba sendo uma metáfora do conflito estabelecido naquela fazenda. Brancos e negros estão em batalha. Seja nas palavras ou, muitas vezes (e violentamente), de forma física. O racismo daquela região é tão incrustado que nem o fato de Ronsel ser um herói militar condecorado serve como apaziguador da questão. Pelo contrário. Causa revolta. Mais ainda por sua amizade com o confuso, mas bondoso Jamie, que precisa esconder o companheiro de traumas quando lhe dá carona, por exemplo.

As mulheres, especialmente Laura e Florence, são extremamente fortes, ainda que precisem pensar várias vezes e encontrar o melhor momento para tomarem atitudes que batam de frente com o machismo presente na mente dos homens à sua volta. A esposa de Henry, por exemplo, é sempre a última a saber de qualquer decisão tomada pelo marido, como se o próprio menosprezasse a opinião da companheira. Já Florence, apesar de alguns protestos de Hap, utiliza a retórica da Bíblia (tão dominada pelo esposo pastor), que consegue convencer o parceiro a respeito de suas ideias utilizando um terreno seguro do próprio. E são elas que tomam conta da casa e precisam sofrer as consequências das impetuosidades dos que as cercam.

O roteiro baseado no livro homônimo da escritora Hillary Jordan e co-escrito pela diretora ao lado Virgil Williams entende e, mais importante, apresenta todos os personagens com suas formas e cores, com vários tons de cinza. Se o racismo impera como tema predominante, as pequenas nuances que lidam com alcoolismo, o papel da mulher, machismo e a desconstrução do sonho americano dão um aspecto pessimista ao longa, ainda mais com seu fim agridoce. Com isso, o elenco dirigido por Rees não encontra uma falha sequer, ainda que, devido a cenas específicas, alguns se destaquem mais que outros, como é o caso de Carey Mulligan, Garrett Hedlund e Mary J. Blige, especialmente.

A lama que dá o título original do filme permeia não só o terreno, como suja os personagens física e emocionalmente. A fotografia acinzentada dá mais palidez ainda a essa história nublada pelo preconceito. Naquele pequeno mundo da fazenda há uma grande metáfora da relação de poder entre homens brancos que não aceitam alguém de igual para igual, além dos seus, mulheres subordinadas e negros, que mesmo libertos, precisam se comportar como escravos. A década pode ser de 40, mas os reflexos ecoam até hoje. Mudbound: Lágrimas Sobre o Mississippi acaba sendo um filme muito mais atual do que aparenta. Inclusive, um dos mais ambiciosos ao tratar de temas tão presentes nas discussões de hoje em dia. Lá pelas tantas, Laura, a personagem de Mulligan, fala que o único dia semana em que ela se sente realmente limpa é no sábado. Nos outros, tanto a própria como quem está ao redor fede. Uma analogia mais do que perfeita para a podridão do ser humano, seja de décadas passadas ou que vive em 2017.

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é crítico de cinema, apresentador do Espaço Público Cinema exibido nas TVAL-RS e TVE e membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Jornalista e especialista em Cinema Expandido pela PUCRS.
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