Crítica


7

Leitores


1 voto 8

Onde Assistir

Sinopse

Mufasa: O Rei Leão conta a origem da lenda de um filhote órfão, perdido e sozinho, até que ele conhece um simpático leão chamado Taka - o herdeiro de uma linhagem real. O encontro ao acaso dá início a uma grande jornada de um grupo extraordinário de deslocados em busca de seu destino. Dirigido por Barry Jenkins.

Crítica

Personagem importante de O Rei Leão (1994), o mandril Rafiki é o ancião sábio, a voz da razão no reino comandado por Mufasa e depois pelo herdeiro Simba. No entanto, em Mufasa: O Rei Leão, talvez pela primeira vez, é feita justiça à sua relevância, pois ele exerce efetivamente o papel de guardião das histórias do reino. Como o centenário Melquíades da obra-prima literária Cem Anos de Solidão, Rafiki é aquele que detém o conhecimento do passado e, por isso, ajuda a guiar o presente, consequentemente fornecendo condições à existência de um futuro. Diante da pequena princesa amedrontada pela chegada da tempestade, o macaco decide falar a respeito de Mufasa, o avô que comandou aquelas terras com uma sabedoria exemplar. Contando com as participações especiais de Timão e Pumba (os alívios cômicos aqui utilizados na dose certa), esse farol transmite à menina o que sabe e ouviu falar a respeito de um monarca nascido em berço plebeu que não herdou o direito a governar, mas o conquistou pelos próprios méritos. Então, por mais que no fim das contas o discurso monárquico prevaleça como lógica intrínseca a esse mundo no qual os demais são súditos dos leões, o cineasta Barry Jenkins mostra o herói não necessariamente como aquele que teria nascido para isso. Mufasa foi resiliente e justo diante dos inimigos, um negociador com as sombras que não o tornaram amargurado e/ou agressivo.

A primeira (e enorme) vantagem de Mufasa: O Rei Leão sobre O Rei Leão (2019) é o fato de ser uma história nova. Mesmo que tenha sido celebrado pela Disney como uma “versão live-action”, o longa-metragem anterior não passava de outra animação, apenas com uma técnica diferente. E o fotorrealismo impressionante não foi suficiente para diminuir a sensação de “já vi esse filme antes”, o que o colocou na prateleira das “obras que nem precisavam existir”. No entanto, desta vez temos uma trama nova, a prequela com o processo de amadurecimento que precedeu a ascensão de Mufasa ao trono. No começo ele é um jovem comum, mas sua vida toma um rumo trágico quando a esperada chuva tem efeito colateral devastador e acaba o separando dos pais. O bom roteiro assinado por Jeff Nathanson toma alguns caminhos semelhantes ao da produção original, a começar por isso de acompanhar um leãozinho órfão aprendendo a se relacionar com o mundo antes de estar pronto para assumir responsabilidades. Feita a ressalva, a trajetória de Mufasa é diferente da percorrida por Simba. Nela há um alargamento da nossa percepção do mundo selvagem repleto de alcateias e com diversos reis dominando a vastidão dos territórios. Adotado pela rainha de uma localidade distante do seu lar, Mufasa vira irmão do príncipe Taka e precisa enfrentar a indiferença de um rei preguiçoso que não faz muito mais do que dormir e mandar. Sabemos que Mufasa vai se tornar rei, mas como isso aconteceu se ele era um plebeu?

Cinema também é discurso. Mufasa: O Rei Leão apresenta situações que podemos correlacionar com nossa realidade à qual são urgentes os líderes que mantenham a harmonia entre todos os povos, não que existam somente para gozar de privilégios. Mufasa é diferente dos leões ao redor, inclusive dos membros da corte que o nega, principalmente porque cresceu em meio às fêmeas. Na realidade, são as leoas as caçadoras de uma alcateia, as guerreiras com instinto aguçado. Ao ser “condenado” a permanecer entre as mulheres do grupo que o acolheu, Mufasa se torna um futuro líder mais capaz. O fato de ter sido criado por fêmeas o tornou um monarca mais hábil, justo, atento e empático. Nessa mesma toada simbólica, quando é preciso derrotar o inimigo, o garoto que conquista o direito de liderar (não o herdando como se o sangue em suas veias fosse superior) convoca diversas espécies a uma união que deixa de lado até mesmo as posições na cadeia alimentar. Mesmo que o roteiro passe um pouco do ponto às vezes ao atribuir a Mufasa somente características positivas, nunca fazendo dele um personagem complexo ou contraditório, ele ganha pontos importantes por conectar a história do futuro rei leão com a nossa realidade carente de lideranças positivas. E faz isso de modo bem orgânico. Barry Jenkins afirma frequentemente que tipo de pessoa deve triunfar e qual é o lugar dos malvados egoístas.

Contando com algumas sequências empolgantes e outras emocionantes, Mufasa: O Rei Leão se destaca por conseguir dar sequência (olhando para trás) a uma história cristalizada no imaginário cinéfilo (inspirada em Hamlet, uma das mais famosas peças de William Shakespeare). O filme insere pitadas de um discurso político alinhado à valorização das mulheres e da convivência entre grupos diferentes, ainda defendendo que o conhecimento ancestral, um dos maiores bens de natureza imaterial de uma sociedade, é capaz de transformar medo em coragem. Mufasa cabe confortavelmente num espaço destinado aos heróis mitológicos porque é sensível, justo e sabe compreender os sinais da natureza. Podemos até colocar essa idealização dele na conta da visão parcial do velho contador mandril, a testemunha privilegiada da ascensão de um amigo cujos feitos naturalmente foram engrandecidos pela morte trágica na tentativa de salvar o seu filho. Barry Jenkins poderia “jogar para a torcida” e fazer Timão e Pumba reprisarem a icônica “Hakuna Matata”, principal canção da animação dos anos 1990. A isso prefere fazer graça, colocando na boca do suricato e do javali algumas tiradinhas metalinguísticas justamente sobre quebrar expectativas. Assim, a nova animação protagonizada por reis leoninos lutando contra inimigos igualmente ferozes cresce à medida que se distancia das anteriores, ao buscar uma voz própria.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

Grade crítica

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *