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Crítica


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3 votos 6.6

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Sinopse

Um retrato íntimo que explora temas como casamento, educação, independência financeira, maternidade e sexualidade. Cerca de duas mil mulheres, de 50 países, estão presentes neste documentário que mostra sua força, mas também aborda as injustiças às quais elas são submetidas diariamente.

Crítica

Não há dúvida de que Mulher (2019) parte das melhores intenções. Os diretores Yann Arthus-Bertrand e Anastasia Mikova abraçam o desafio utópico de retratar a experiência de ser mulher em todas as partes do mundo. Escuta-se nada menos do que duas mil mulheres em mais de cinquenta países, com equipes locais garantindo as entrevistas de cada cidade ou região. Há mulheres brancas, negras, asiáticas, indígenas; ricas, pobres e de classe média; idosas, adultas e adolescentes; falando dezenas de línguas; em diferentes condições de poder, com experiências positivas e negativas de vida. Elas discorrem sobre a primeira menstruação, a gravidez, o casamento, o primeiro orgasmo, as dificuldades encontradas no mercado de trabalho, a violência doméstica, a imposição de padrões de beleza, o estupro, a maternidade, a infidelidade etc. Caso ainda não esteja claro, um letreiro avisa: Mulher existe para que as vozes delas sejam ouvidas”.

O documentário adquire proporções imensas, ainda que resulte simples em sua estrutura. As convidadas dialogam diretamente para a câmera, com um foco de luz em seus rostos sobre fundo escuro, para que nada retire a nossa atenção das expressões, das diferentes faces e dos acessórios que portam. Algumas mulheres têm seus testemunhos incluídos no filme, outras se convertem em rostos anônimos que sorriem ao espectador, estáticos; algumas ainda se viram e revelam o rosto à câmera, após uma pausa dramática. Em seus países, mulheres posam nas ruas com suas famílias, ou dentro de casa, como se reproduzissem a dinâmica da fotografia still diante do dispositivo concebido para captar o movimento. O filme se assemelha a um farto álbum de retratos, no qual os rostos pretendem possuir valor por si próprios: mesmo em silêncio, dezenas de mulheres ainda “têm suas vozes ouvidas” de acordo com a direção. Este é o paradoxo de um filme que mira uma completude impossível: ao tentar se aproximar do total, ele escancara suas faltas.

Ora, os diretores apostam numa leitura literal demais da ideia do “mundo inteiro”. Ao invés de partir do caráter representativo do cinema, ou metonímico da amostragem, buscam de fato a sensação de onipresença e onipotência de temas. Assim, resulta tão completo (por abordar, de fato, uma infinidade de questões em menos de 110 minutos) quanto vago. Falta-lhe foco, enfim. Acena-se a temas fundamentais, sem que nenhum deles possa se aprofundar, já que logo precisa ceder espaço ao tema seguinte. Arthus-Bertrand e Mikova preocupam-se mais com a quantidade do que a qualidade. Diante de quantidade tão expressiva de depoimentos, poderiam se focar nos abusos domésticos nos quatro cantos do mundo, nos desejos femininos ou na desigualdade no mercado de trabalho. No entanto, preferem o efeito do mosaico: mais vale ao discurso o fato de citar determinado conflito do que a reflexão proposta a partir desta conversa. O filme termina por adquirir um valor retórico: ele se qualifica pelo simples fato de ter conversado com tantas pessoas, importando pouco o conteúdo de cada depoimento – mesmo que possua falas muitos fortes.

Além disso, a montagem de sucessivos depoimentos possui limitações. A estrutura sugere que todos esses relatos são equivalentes, como se o fato de ser mulher implicasse numa mesma experiência nos Estados Unidos, no Congo ou numa aldeia indígena sul-americana. Compreende-se que os cineastas busquem eliminar hierarquias entre as personagens através de uma categoria global de “mulher”, no entanto, a decisão de cortar as personagens de seus contextos resulta questionável. Ainda que sejam todas indiscutivelmente mulheres, onde quer que vivam, a sugestão de que a rotina de uma pesquisadora na Europa equivalha à trajetória de uma indiana forçada a se casar durante a infância acaba por desmerecer vivências em cenários socioeconômicos adversos. Isolar o indivíduo de seu meio resulta num esvaziamento de sua representação, sobretudo num projeto de vocação antropológica como este. Busca-se certa “natureza feminina”, algo que as torne iguais, embora a busca pela variedade, ironicamente, sublinhe as diferenças que precisariam ser compreendidas enquanto tais.

Em paralelo, apesar de ostentar um discurso progressista – sem julgar negativamente personagens que abortaram, nem mulheres lésbicas e transexuais -, o projeto carrega uma estética estereotipada da feminilidade enquanto sinônimo de delicadeza. As vinhetas poéticas apostam em temas singelos com pianos ou violinos, enquanto os corpos se movem em câmera lenta, seja flutuando na água (em alusão às sereias) ou voando pelos ares. As vozes sussurradas da narração produzem um contraste evidente: enquanto os discursos valorizam a força das entrevistadas, as imagens de sereias esculturais privilegiam a doçura. O segmento sobre mulheres expondo seus corpos nus, em sobrepeso ou com rugas, insiste na suposta “coragem” feminina em se assumir enquanto tal, algo semelhante ao discurso de revistas femininas mainstream. Este olhar fetichiza os corpos fora do padrão, sublinhados por sua diferença em relação à norma. Não há naturalidade no modo como são representados por se tornarem retratos de exceção (“Está vendo como ela tem a coragem de se mostrar nua, mesmo sendo gorda?”, insiste o filme). Mulher insiste em ver suas protagonistas sem nome nem país como vítimas ou heroínas, algozes ou guerreiras. O respeito esbarra numa instrumentalização pouco proveitosa em termos de representação artística.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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CríticoNota
Bruno Carmelo
5
Francisco Carbone
4
MÉDIA
4.5

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