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Sinopse

Ruben e Nalu moram no campo, perto da fronteira entre Brasil e Uruguai. Quando ele percebe que a filha, aos 16 anos, já é uma mulher, uma perturbadora proximidade surge entre os dois. O estranhamento inicial dá lugar ao ciúme quando Rosario, uma atraente uruguaia, ganha espaço na vida de ambos.

Crítica

As paredes carcomidas pelo tempo, nas quais está impressa a estagnação da pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul onde se passa Mulher do Pai, emolduram o turbilhão de contradições emocionais que atravessa a convivência entre um pai e sua filha. Ele, Ruben (Marat Descartes), é um tecelão cego, em quase tudo dependente. Ela, Nalu (Maria Galant), é uma típica adolescente curiosa, cheia de anseios, que se sente acuada após a morte da avó. A fatalidade faz recair sobre seus ombros responsabilidades às quais não está devidamente preparada. A diretora Cristiane Oliveira constrói essa relação conturbada de uma maneira muito sofisticada, a despeito do aparente despojamento da encenação. De certa forma, o filme se insere num filão recorrente no cinema gaúcho contemporâneo, com os personagens refletindo uma crise de identidade tão silenciosa quanto excruciante, instaurada exatamente nos ambientes rurais, ou em suas circunvizinhanças, onde surgiu a concepção mítica do campesino riograndense.

Nalu vive aquele momento de questionamentos próprio à véspera de tornar-se adulta. Cada beijo se transforma numa possibilidade de amor eterno. As conversas com sua melhor amiga são banais, tratam de garotos e do vislumbre do futuro, de preferência longe do fim de mundo. Sua falta de paciência com as necessidades especiais do pai não significam ausência de respeito ou amor, mas um incômodo bastante compreensível diante da possibilidade real de algo ancorá-la ali por um bom tempo. Já Ruben se resigna à dor de ter perdido a mãe, a bússola que o orientava, mergulhando num estado de autocomiseração. Mulher do Pai não alardeia motivações, preferindo tratar as ocorrências com naturalidade semelhante a da sucessão dos dias. A câmera de Cristiane Oliveira é, no mais das vezes, uma testemunha dada a contemplar o movimento frequente de adaptação ao que a vida oferece ou tira das pessoas em cena. É um longa bonito, que aposta certeiramente na singeleza dos sentimentos motrizes.

Marat Descartes impressiona não apenas por conta da concepção de seu protagonista acabrunhado, mas também pelo impecável sotaque fronteiriço. Maria Galant, por sua vez, não faz feio contracenando com o experiente ator, conseguindo transmitir muito bem os diversos estados emocionais de Nalu, indo da excitação por conta de um forasteiro, passando pela tentativa de desvencilhar-se das responsabilidades em prol de suas vontades, chegando à contraditória irritação frente ao interesse que o pai começa a nutrir por sua professora uruguaia. Mulher do Pai mostra, nas entrelinhas, que as diferenças são superficiais, enquanto as similaridades estão enraizadas, prontas a emergir. Se antes vemos o pai sofrendo em silêncio ao ouvir secretamente os relatos eróticos da filha, logo depois testemunharemos a contrariedade da menina ao perceber o pai enrabichado. Mais que ciúmes, essas reações explicitam um medo compartilhado e inconsciente, que acaba se manifestando, da solidão.

Além de extrair da paisagem, bem como do registro da morte lenta e gradual de um espaço simbólico – já que os jovens locais, com raras exceções, almejam mudar-se para centros maiores, a fim de fugir da pasmaceira – Mulher do Pai é contundente, sem nunca perder de vista a ternura, especialmente no que tange à singularidade da radiografia familiar. Não há certos ou errados, vilões e heróis nessa trama pontuada pelas constantes aberturas de feridas que sangram e ficam expostas até cicatrizarem, tornando, assim, os corpos mais fortes para aguentar o porvir. Cristiane Oliveira demonstra habilidade e, acima de tudo, sensibilidade para tratar cada instante como uma peça única, cada olhar e gesto com o devido peso dramático. É nas minúcias que o longa-metragem encontra seu sumo, aquilo que estofa de verdade o percurso dos protagonistas. A garota sonha com o Uruguai, já o homem teme o isolamento mais que a inevitável escuridão. No fundo, seus medos e desejos são praticamente os mesmos.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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