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Sinopse

Instigada por suas experiências em Tóquio, bem como pela imagem de uma mulher nadando vigorosamente no oceano, uma escritora brasileira recém-chegada à Terra do Sol Nascente começa a escrever o seu novo romance.

Crítica

Ana/Hannah (Djin Sganzerla) é uma destas personagens femininas que gostaríamos de ver com mais frequência nas telas do cinema – considerando que se trate, afinal, da mesma mulher. Ela possui alguns conflitos amorosos, mas nunca é definida pela presença de um homem em sua vida. A escritora carrega dilemas profissionais que tampouco representam a totalidade de seus desejos e objetivos. A dupla personagem possui uma relação simples, e ao mesmo tempo verossímil, com a mãe (Lucélia Santos) e o pai (Stênio Garcia). Apesar da paisagem ao redor, o foco se encontra no vasto universo íntimo da mulher silenciosa, de olhar admirador, transitando entre o mar do Rio de Janeiro e os mares do Japão. Hannah representa uma figura ao mesmo tempo complexa em sua psicologia, e também muito comum em termos de construção de corpo e fala. Sganzerla, diretora e atriz principal, possui o misto de generosidade e humildade ao transformar sua heroína num corpo presente, disposto a atravessar oceanos e cidades com louvável abertura a experiências distintas. Presente durante a quase totalidade das cenas, esta mulher preserva certo mistério ao final da projeção, não por ser incompleta ou mal resolvida diegeticamente, e sim por permitir leituras amplas, mesmo contraditórias.

Mulher Oceano (2020) impressiona pelo belíssimo tratamento dos espaços. Percorre-se Rio de Janeiro e Tóquio através de uma câmera disposta a acompanhar sua protagonista nas ruas, dentro dos apartamentos, nas avenidas e no mar. As lentes grandes-angulares, o trabalho de luz natural e a disposição aos planos-sequência favorecem o aspecto de fluidez e de naturalidade tão importantes a esta heroína em deambulação. Embora os cartões postais de ambas cidades estejam presentes, eles são equilibrados com uma subida aos morros cariocas, ou com passeios de bicicleta nas vielas japonesas. A montagem salta com frequência entre os dois lados do mundo, o Ocidente e o Oriente, as avenidas e as águas, como se a personagem pegasse um trem de Tóquio e chegasse na estação final do Rio de Janeiro. De narrativa agradável e sem sobressaltos, o filme intercala as duas mulheres observando uma à outra, como uma imagem diante do espelho. A noção de duplicidade, tão comum enquanto oposição, adquire o ar de irmandade. O Brasil não se torna avesso do Japão, e sim, seu complemento. A coesão da fotografia permite que ambos os lugares sejam apreendidos pelo mesmo olhar, sem a admiração exótica de um país estrangeiro.

A premissa desperta receio de uma semelhança excessiva entre o projeto brasileiro e o drama Encontros e Desencontros (2003), de Sofia Coppola. Ambos giram em torno de uma mulher ocidental perambulando sem rumo na capital japonesa, estabelecendo relações poéticas com a cidade e frequentando karaokês com moradores locais. No entanto, se a cineasta norte-americana privilegiava as excentricidades da nação distante, Sganzerla favorece a sensação de pertencimento. Hannah está bem inserida em Tóquio: ela aparenta conhecer a cidade, os hábitos, as comidas. A própria noção de familiaridade dissipa o aspecto turístico esperado do maravilhamento diante da diferença. A diretora privilegia a ambientação etérea obtida pelo deslize constante da imagem, a trilha sonora pontual e vagarosa, o estilo reservado da protagonista, os acontecimentos quotidianos. Cenas deslumbrantes como o mergulho das amas japonesas em alto mar, com a descrição das mesmas em off, ou a conversa entre Hannah e o colega Yukihiro (Kentaro Suyama) de costas dentro do transporte público reforçam a delicadeza da imagem dissociada do som, em teor de sonho ou ruminação interna. Ainda que não exista uma narração da protagonista, a narrativa se converte em diário graças ao texto desta escritora sobre si mesma.

Virtudes à parte, o principal risco de Mulher Oceano se encontra no possível desgaste da metáfora das águas devido à saturação. Há dezenas de cenas no mar, na banheira, na piscina, projeções de ondas sobre corpos, quadros com imagens das águas e canções sobre as ondas do mar. Começa-se e termina-se, literalmente, na praia. O projeto se aproxima de uma representação literal demais devido à presença ostensiva de nadadoras, mergulhadoras e dois livros sobre o mar. Ao menos, existem escolhas de direção interessantes a respeito destas cenas. As águas são filmadas de maneira brutal, sem precisarem de referências geográficas por perto (há diversos planos das ondas ocupando todo o enquadramento), o que favorece a ideia de se perder nas águas, ser invadida por elas. O mar nunca se torna um limite do horizonte nem uma fronteira de países, e sim a possibilidade de união entre ambos. Mesmo que as falas do treinador (Rafael Zulu) soem explicativas demais (“Você é experiente!”), ainda se aposta na travessia pessoal mar adentro, onde a possibilidade do desaparecimento se transforma tanto num risco quanto num convite irresistível.

Além disso, o filme se sai muito melhor nas cenas externas do que nas internas, menos expressivas em termos plásticos. O café na casa do pai possui uma iluminação limitada, enquanto a reunião com o patrão soa indecisa quanto ao enquadramento e ao teor dramático procurado. Entretanto, estes momentos constituem meros detalhes diante de tantas sequências muito bem dirigidas, filmadas e montadas. No papel principal, Sganzerla oferece uma notável composição sem vaidades, algo especialmente difícil de obter em se tratando de um projeto dirigido por ela mesma. A cineasta evita a tentação de idealizar a heroína, os cenários e as pessoas, assim como impede qualquer malabarismo imagético que chame atenção excessiva à sua condução. Ela escapa das armadilhas fáceis da morte espetacular em alto mar, da traição com o amigo japonês, de um livro extremamente bem-sucedido ou fracassado. O filme navega entre nuances: ao invés de explicar, prefere o banquete de sensações, sugestões e analogias. Mesmo que o espectador interprete Ana e Hannah como duas figuras diferentes, opostas, complementares ou idênticas, elas representam o mesmo ideal de autonomia e busca de si.

Filme visto online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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