A Mulher que Inventou o Amor
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Jean Garret
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A Mulher que Inventou o Amor
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1979
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Brasil
Crítica
Leitores
Sinopse
Doralice é uma jovem ingênua e romântica que acaba se transformando numa prostituta bem sucedida. Conhecida como a Rainha do Gemido, sua situação melhora depois de conhecer o Doutor Perdigão, velho milionário que a escolhe para sua amante exclusiva.
Crítica
Português dos Açores radicado no Brasil, o cineasta Jean Garrett, que no início de sua carreira trabalhou como assistente de direção de José Mojica Marins, é hoje considerado um dos nomes mais inventivos e singulares da era da Boca do Lixo paulistana. O traço autoral acentuado e o grande apreço pelo cinema de gênero estão entre os elementos que fazem de sua obra objeto de culto. A Mulher Que Inventou o Amor serve como um ótimo exemplo para justificar tal admiração. A trama do longa, escrita por João Silvério Trevisan, acompanha Doralice (Aldine Müller) uma jovem bela e tímida que, influenciada por sua colega de quarto (interpretada por Heloísa Raso), começa a trabalhar como garota de programa em um inferninho das redondezas.
A partir do sucesso alcançado em sua nova profissão, ficando conhecida como “A Rainha dos Gemidos”, Doralice embarca em uma jornada de transformação quase completa, e é justamente neste processo metamórfico que Garrett concentra seu foco. O erotismo, como é sabido, constituía um componente fundamentalmente comercial nas produções do cinema nacional entre as décadas de 1970 e 1990, mas no caso dos trabalhos de Garret, o sexo também possui uma função dramática essencial para o desenvolvimento de história e personagens. Em A Mulher Que Inventou o Amor, a trajetória evolutiva da protagonista, de mulher oprimida à dominadora, passa obrigatoriamente pela descoberta e pelo modo como aprende a lidar com seu poder sexual, utilizando-o como ferramenta principal para sua libertação.
É dessa forma que ela aprende a satisfazer os clientes, fingindo prazer com seus gemidos repetidos mecanicamente e, aos poucos, a Doralice de ingenuidade etérea que sonha em se casar com o galã de novelas César Augusto (Zecarlos de Andrade) e que recentemente perdera a virgindade em um açougue – tratada como mais um mero pedaço de carne - dá lugar a uma nova mulher. O marco desta mudança ocorre quando a personagem se envolve com o Doutor Perdigão (Rodolfo Arena), um milionário casado e sexagenário que deseja fazer da amante uma dama da alta sociedade. Assim, após ser treinada por uma tutora, ela assume sua nova identidade, a sofisticada Tallulah, femme fatale de postura determinada, ativa e ciente da força dominante que exerce sobre os homens.
Aldine Müller encarna essa dualidade da personagem com uma entrega invejável. Dona de uma beleza naturalmente estonteante, a atriz apresenta uma atuação envolvente que revela todas as camadas da progressiva transformação da frágil e inocente Doralice em Tallulah. Antes submissa, agora é ela quem assume um papel quase masculino, algo perceptível já no próprio relacionamento com o Doutor Perdigão, que sucumbe aos desejos de sua criação. Essa inversão de conduta chega ao ponto máximo quando a protagonista se veste de modo masculinizado e seduz um jovem rapaz em uma praça. A relação com o sexo também se modifica, pois Tallulah não só passa a buscar o prazer ao invés de oferecê-lo, como faz questão de contestar e humilhar os homens incapazes de satisfazê-la.
Até mesmo quando finalmente realiza o desejo de ter uma noite de amor com seu ídolo, César Augusto, a faceta controladora da personagem se manifesta, obrigando-o a vestir roupas íntimas femininas e até mesmo a simular os gemidos que lhe tornaram famosa. Ainda guardando resquícios da concepção de felicidade idealizada, filtrada pelo universo fantasioso das novelas, ela alimenta cada vez mais sua obsessão pelo galã, e conforme se perde em Tallulah seu lado sombrio aflora com maior intensidade. Garrett realça esse aspecto da personalidade da protagonista empregando uma atmosfera onírica à narrativa, muito influenciada pelo cinema de Buñuel. O apuro estético do cineasta impressiona em diversos momentos, sempre ajudado pelo excelente trabalho de direção de fotografia realizado por Carlos Reichenbach, especialmente no registro da ambientação noturna, com suas luzes neon e enquadramentos muito bem elaborados.
Um exemplo desse arrojo visual é a magnífica cena em que Doralice, vestida de noiva, se masturba diante de um pôster de César Augusto, e a iluminação faz com que a imagem seja envolta por uma aura celestial. A sequência no restaurante, na qual todos comem e bebem sangue, também é marcante e reforça as referências surrealistas de Garrett. Sangue, aliás, que transborda no catártico clímax – com toques de Dario Argento e dos filmes giallo – quando o lado possessivo de Tallulah explode e sua transformação se completa: de um manequim sem vida, como os vistos nos créditos iniciais, a uma mulher carnal e de passionalidade sem limites. O cineasta brinca com a oposição de conceitos – vida e morte, amor e ódio – elevando ainda mais a carga irônica de seu trabalho, algo que culmina no antológico plano final de Tallulah realizando uma marcha nupcial solitária pelas ruas, enquanto a câmera enquadra o cartaz publicitário do desodorante íntimo Lovely com seu slogan “Amar é ser fiel até o fim...”. Um plano que simboliza com perfeição a ousadia e a subversão da obra de Garrett.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
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Leonardo Ribeiro | 9 |
Bianca Zasso | 9 |
MÉDIA | 9 |
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