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Crítica


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Sinopse

Debilitada por conta dos danos causados pela siderurgia, a cidade de Taranto foi isolada do resto do país e evacuada. Dentro dos limites desse lugar sem lei, um exército de jovens lutam pelo controle territorial.

Crítica

A realidade vista de Mundo Cão é pós-apocalíptica. Nela, os resíduos da atividade industrial da siderúrgica local deixaram uma cidade italiana inabitável, isolada do resto do mundo. Surgiu uma terra de ninguém onde um grupo de crianças chamadas de Formigas atende aos comandos de Testacalda (Alessandro Borghi), líder carismático que camufla sua agressividade ao fazê-la parecer acolhimento apropriado nesse panorama propenso à selvageria. Mas, os protagonistas do longa-metragem selecionado para a 8 ½ Festa do Cinema Italiano 2023 são os pequenos Mondocane (Dennis Protopapa) e Pisciasotto (Giuliano Soprano). Vivendo sob a proteção de um ribeirinho idoso que os acolheu das ruas, esses garotos sonham com a única ascensão social que conhecem, ou seja, entrar para o grupo dos Formigas. O primeiro é gentil e ético, não aceitando realizar esse desejo conjunto se o colega também não for aceito. Já o segundo, fragilizado pela epilepsia, é do tipo sobrevivente doa a quem doer. É fácil antever que Pisciasotto passará até mesmo sob o corpo espancado do amigo se isso lhe garantir alguma vantagem nessa realidade aterradora. Em sentido estrito, o filme fala sobre estas duas inocências: uma resistindo à corrupção na medida do possível e a outra voluntariamente se transformando em sordidez, se isso garantir prosperidade na sociedade corroída por rejeitos da desenfreada industrialização.

A estratégia do cineasta Alessandro Celli é clara: fazer da distopia um cenário propício para abrigar o tipo de disputa entre irmãos remetente à tragédia grega. Mondocane e Pisciasotto são unha e carne, mas as diferenças de suas personalidades anunciam que a crise abalará esse vínculo tão logo seja necessário aderir ou não à lógica do mais forte como vitorioso. No entanto, falta uma elaboração melhor do contexto no qual eles estão inseridos. Sabemos que existe a área isolada, somos apresentados à policial egressa do orfanato, à menina que mora atualmente no abrigo para menores, à praia dos endinheirados, mas nem essa variedade serve para valorizar o ambiente social como atributo fundamental da trama. É justamente no desenho desse mundo em colapso para uns e adequado a outros que o roteiro a cargo de Alessandro Celli e Antonio Leotti deixa a desejar. Não enxergamos o Estado, senão por meio da polícia, e temos poucos subsídios para compreender o encaixe das situações em panoramas amplos. A instituição mais trabalhada é justamente a dos Formigas, vide as sequências didáticas para compreendermos seu funcionamento como família disfuncional formada de meninos e meninas enjeitados. Por exemplo, a dinâmica entre a policial e a menina que trabalha para pagar sua estadia no abrigo de menores é uma tentativa (malsucedida) de criar um espelhamento entre a criança e a adulta.

Mundo Cão agrega vários personagens em torno dessas tempestades entre estratos sociais discrepantes, para isso usando e abusando das identificações simples. Mondocane e Pisciasotto podem ser enxergados como faces possíveis da moeda chamada Testacalda – líder que concentra o lado terno de Mondocane e a implacabilidade de Pisciasotto. Alguns apontamentos acrescentam camadas psicológicas interessantes à trama, sendo o principal deles a necessidade do extermínio de figuras paternas simbólicas para os meninos amadurecerem e, quem sabe, atingirem graus satisfatórios de emancipação pessoal. Primeiro é o pescador que os adotou, cuja morte serve para dar alforria à dupla – embora a fatalidade tenha ênfase como evento desencadeador das diferenças entre os meninos, pois um o considerava pai adotivo, enquanto o outro não demora a agredir o cadáver como forma de vingança contra maus tratos. A segunda morte que retira de modo figurado um “pai” de cena em prol da independência é a do sujeito que os acolheu no seio de uma comunidade sob a qual exerce poder de liderança incontestável. Pena que Alessandro Celli não realce moral e filosoficamente falando a profundidade desses gestos de agressividade, preferindo a isso insistir no distanciamento dos meninos. Mesmo com esses seus pontos baixos, o filme tem a capacidade de manter o interesse, de nos engajar nisso.

Portanto, o tema da infância perdida é o principal elemento de Mundo Cão. Se, por um lado, a construção dessa realidade às ruínas soa genérica e pouco específica, por outro, o afastamento gradual que resulta no antagonismo entre Mondocane e Pisciasotto é convincente – nada que já não tenhamos visto em outras obras semelhantes, mas aqui o diretor demonstra domínio do assunto e os atores mirins desempenham seus papeis muito bem. A menina, a policial, os capangas de Testacalda são quase itens decorativos. Um dos indícios da displicência com o desenho pós-apocalíptico está na transição entre o quartel general das Formigas e a praia dos endinheirados. Alessandro Celli prefere não mostrar o quão árduo é o caminho para se chegar da área interditada àquela que também é vedada à maioria da população (essa ironia sequer é sinalizada). Em vez de salientar as dificuldades da viagem, o realizador utiliza uma elipse – supressão de tempo entre um episódio e outro –, fazendo um dos garotos dizer à menina: “você não sabe como foi difícil chegar até aqui”. Ao optar pela elipse, Celli não apresenta os obstáculos, privando o espectador de os testemunhar, achando por bem preencher a lacuna com uma fala pouco eficiente e dita de forma banal. Escolhas como essa diminuem a intensidade dramática da distopia, o que compromete a jornada desses meninos irmanados pelo sofrimento.

Filme visto durante a 10ª 8 ½ Festa do Cinemas Italiano, em junho de 2023

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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