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Sinopse

Os moradores do Conjunto Habitacional Muribeca, em Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco, percebem que o local deve desaparecer em breve devido à especulação imobiliária. Eles se compartilham as memórias vividas na região.

Crítica

A voracidade da especulação imobiliária tem sido frequentemente observada pelo cinema contemporâneo como uma vilã temível. Toda vez que uma edificação antiga tomba para dar lugar a prédios modernos, não é apenas o horizonte físico que sofre sérias alterações. Levando em consideração que os espaços contêm histórias, memórias, vivências e afetos, a sobreposição acarreta perdas de valores incalculáveis, especialmente a de bens imateriais. Enquanto esse texto está sendo escrito, a cidade do Rio de Janeiro corre o risco de perder um de seus principais cinemas de rua – há décadas no mesmo endereço –, pois o proprietário do imóvel prefere derruba-lo e erguer mais um prédio residencial feito de apartamentos caríssimos. Documentário dirigido por Alcione Ferreira e Camilo Soares, Muribeca se junta a outras produções empenhadas em refletir sobre esse pouco admirável mundo novo prestes a substituir o insubstituível dentro de uma lógica de gentrificação. O assunto é a transformação do Conjunto Habitacional Muribeca, situado em Jaboatão dos Guararapes, no Pernambuco, num lugar em que a obsolescência cheira a plano arquitetado. As moradias que antes continham pessoas, causos, elos afetivos e solidariedade, atualmente parecem condenadas. As paredes carcomidas e o abandono de toda uma comunidade contrastam com lembranças saudosas e gloriosas.

Alcione Ferreira e Camilo Soares poderiam abordar a situação por inúmeros vieses. Poderiam encarar a resistência dos moradores que insistem em permanecer no local – algo muito próximo do que acontece com a personagem de Sônia Braga em Aquarius (2016); poderiam fazer um retrato melancólico da luta inglória do povo humilde contra esse sistema escuso que avança como um rolo compressor; poderiam observar tudo de um ponto de vista mais amplo, talvez dissecando o funcionamento do mercado imobiliário, a besta esfomeada. Enfim, as possibilidades são diversas. E a dupla prefere fazer uma soma muito simples de recordações manifestadas com um misto de indignação e resignação por todos os depoentes. Sem identificar as pessoas ao longo do filme ou situar o espectador quanto às suas importâncias à comunidade, os realizadores abrem as suas câmeras e costuram testemunhos que dão conta de velhas reuniões no pátio comum, de relacionamentos amorosos que começarem a terminaram naquele lugar prestes a morrer, de tragédias e comédias cotidianas. Os conteúdos são fortes, carregados de emoções genuinamente à flor da pele, mas têm basicamente os mesmos tons e semelhantes funções narrativas. Embora com menos de 80 minutos, Muribeca chega a ser cansativo por conta da falta de variações. No fim das contas, quase tudo se resume a: “antes, esse lugar era um paraíso”.

Alcione Ferreira e Camilo Soares fazem uma colcha de retalhos ao resgatar causos para comprovar a tese de que o fim do conjunto habitacional representa mais do que na substituição de uma estrutura fria por outra a ser ocupada dentro de um contexto urbanístico e social diferente. Mas, esse objetivo é alcançado rapidamente, talvez já no segundo ou terceiro depoimento em que os moradores ou ex-moradores expõem uma das faces mais horrendas do capitalismo hegemônico: a negligência das verdadeiras urgências humanas em prol de algo vendido como uma necessidade humana urgente. Dali em diante, o filme se repete demasiadamente, inclusive não sustentando o interesse na luta (efeito colateral significativo) ao expressar visualmente esse desalento compartilhado. A falta de um desenho sonoro mais criativo, por exemplo, torna quase estéreis certos planos fixos de prédios condenados. Portanto, não basta apenas fixar-se numa imagem de decadência para enxerga-la imediatamente como uma expressão da consternação de quem viveu na Muribeca nos tempos áureos. Também certo esquematismo depõe contra o resultado. Os realizadores seguem um esqueleto mais ou menos assim: depoimento emotivo + plano fixo na paisagem agonizante + repetição com outro "personagem". Nem mesmo a riqueza humana ameniza isso, pois as subjetividades são preteridas em função dos traços em comum. Tampouco o respiro poético bem-vindo das as intervenções artísticas traz tanta vivacidade ao conjunto.

Uma estratégia que poderia muito bem funcionar em Muribeca é a utilização de outras fontes, especificamente os materiais de arquivo feitos pelos próprios moradores (peças de teatro, flagrantes domésticos, pequenas apresentações, etc.). Alcione Ferreira e Camilo Soares inserem essas texturas e fontes diferentes no longa-metragem, mas nem assim são totalmente bem-sucedidos. Isso ocorre, basicamente, pelos mesmos motivos que invalidam a heterogeneidade humana como uma aliada. Essa diversificação apenas aparentemente oferece possibilidades para ampliar o diagnóstico. No fim das contas, os realizadores se contentam em reiterar uma radiografia da tragédia humana diante do predatório sistema imobiliário, mas sem dedicar-se às leituras sociais; nem a pinçar certas contradições que devem existir num universo tão amplo; e sequer a investir numa jornada cinematograficamente intensa e/ou instigante. A causa e as reflexões são mais do que nobres, pois, afinal de contas, é preciso ao menos pensar sobre o avanço de uma mentalidade que vende a destruição de tantos bens imateriais como um efeito colateral infeliz da modificação conveniente (para poucos) da paisagem. Pena, ainda, que os realizadores não investiguem a transformação da Muribeca num lugar insalubre como uma estratégia competitiva do mercado (um aliado do Estado) para manter alta a demanda, custe o que custar, doa a quem doer. Aliás, a cena da máquina devorando local é ao mesmo tempo sintomática, bonita e dolorosa.

Filme visto durante o 25º Cine PE, em novembro de 2021.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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