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Sinopse

Mulher de espírito livre, Zu repentinamente se torna responsável por Music, sua meia-irmã, uma adolescente com autismo criada pela avó.

Crítica

A protagonista de Music não é a jovem autista que empresta seu nome sugestivo (demais?) ao primeiro longa-metragem dirigido pela cantora Sia. A verdadeira personagem principal é a sua irmã, Zu (Kate Hudson), típica garota-problema em liberdade condicional e sem perspectivas imediatas de trilhar um caminho menos turbulento. A morte da avó de ambas coloca a jovem vulnerável sob a tutela da desgarrada. Pela premissa surrada, dá para antever uma trajetória em que a desorientada aprenderá uma valiosa lição em contato com a limitação daquela que inicialmente lhe parece um fardo. E é exatamente o que acontece nesse filme que vem sendo bastante criticado, inclusive, pela representação caricatural de uma pessoa com esse transtorno neurológico. Para entrar especificamente nessa seara, seria necessário conhecimento prévio e consistente das  incontáveis minúcias do autismo. No entanto, é evidente que os trejeitos da atriz Maddie Ziegler reforçam uma preconcepção da condição, o que certamente se encarrega de reforçar determinados ruídos galvanizados no imaginário comum. É preciso, ao menos, refletir sobre essa opção diretiva, entender como gerar esse retrato.

Contudo, além das controvérsias a respeito da representação da autista não verbal está a forma dela ser encaixada dentro da produção, como um mero apêndice da caminhada absolutamente previsível da Zu. Music é amparada por uma bonita rede de afetos tecida silenciosamente entre vizinhos, mas rapidamente acaba como aquela cuja excepcionalidade vai transformar a visão de alguém aparentemente sem rumo. Music abraça desbragadamente os principais lugares-comuns desse tipo de jornada, com a “forasteira” inicialmente negando a responsabilidade, buscando estratégias para livrar-se o quanto antes da irmã autista, mas aos poucos descobrindo a beleza da convivência antes percebida apenas como uma inconveniência. No entanto, Sia não se contenta com essa filiação estrita aos códigos vistos em histórias similares, previamente exibidas nos cinemas, pois se reporta a arquétipos muito desgastados. Alguns potencialmente ofensivos e/ou reducionistas são utilizados para desenhar as pessoas que circundam as irmãs desamparadas repentinamente. Exemplo disso, o vizinho interpretado pelo talentoso Leslie Odom Jr., restrito a ser um bom samaritano e uma estrela guia.

Ebo (Odom Jr.) surge nos momentos mais cômodos para explicar a Zu como Musica “funciona”. Também é próximo de uma idealização/romantização o jeito dele lidar com as demais circunstâncias de sua vida. Sia lança mão de outro chavão ao fazer esse estrangeiro afirmar que no seu país natal (Gana) as pessoas com deficiência são tratadas desumanamente – deixando assim implícita a ideia de que nos Estados Unidos as coisas são diferentes, mais inclusivas. A menção à “aldeia” na mesma frase remete à lógica tribal que evidentemente existe na África, mas é tão banalizada no desenho do continente africano que se torna um clichê contraproducente. O mesmo pode ser dito da condição de Music. Evidentemente há autistas com suas características, mas elas são disseminadas indiscriminadamente como a visão padrão do espectro ao ponto de gerar um estereótipo, aqui reforçado pela reincidência. Ainda quanto aos imigrantes, a família de orientais chefiada por um pai opressor surge ostensivamente como ruído. Por certo, Sia os cerca de gente diversa – Hector Elizondo, que vive George, tem ascendência porto-riquenha – mas a gratuidade ressalta o vulgar.

Os números musicais são chamativos em Music. No entanto, mais que revelar intimidades não manifestadas ou servir para ilustrar dilemas, medos e felicidades, eles servem pura e simplesmente como performances pontuais. No começo, alguns até se encarregam de exteriorizar superficialmente a subjetividade de Music, mas o fazem sem efetividade, basicamente pegando a condição excepcional da menina para criar apresentações de gosto bastante duvidoso. Porém, rapidamente, se tornam somente espalhafatosos, cada vez mais adquirindo uma natureza videoclíptica pelo isolamento, bem como em virtude da estrutura à qual respondem. Esses rápidos videoclipes funcionam como respiros, interlúdios entre o amontoado de chavões e rótulos sendo distribuídos e atribuídos impunemente. A pretensa ode à capacidade regenerativa da música igualmente naufraga por inanição diante das fragilidades e dos componentes desajeitados. A realizadora de primeira viagem demonstra boas intenções, mas dá um tiro n’água porque não as desenvolve com personalidade e/ou de modo responsável. Isso sem mencionar a cena ridícula da cantora famosa (quem?) comprando analgésicos ilegalmente, logo surpreendendo com a intenção de doar às crianças pobres do Haiti. E dá-lhe estereótipos.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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