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Crítica


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Sinopse

Após se mudar para a capital iraniana, Teerã, a jovem transgênero Amen está otimista quanto a conseguir uma cirurgia de redesignação de gênero. Um homem rico promete pagar pelo procedimento, mas não revela suas condições. Aos poucos, a garota descobre que o preço a pagar pode ser alto demais.

Crítica

A premissa de uma jovem mulher transgênero vivendo no Irã desperta atenção: de que maneira o país que criminaliza pessoas gays, lésbicas, transexuais e transgênero lidaria com tal personagem? Os diretores Mohammed Torab-Beig e Mehdi Torab-Beig partem de uma escolha curiosa: eles jamais revelam o rosto ou o corpo da protagonista. Na Prisão Evin (2021) é filmado inteiramente em câmera subjetiva, ou seja, o espectador enxerga aquilo que Amen, a garota trans em busca de uma cirurgia de redesignação de gênero, também vê. Nestes casos, é comum fazer com que o herói ou heroína passe em frente a um espelho para que se descubra sua aparência (caso de Hardcore: Missão Extrema, 2015). Ora, os cineastas são ainda mais rígidos neste procedimento: nas duas únicas ocasiões em que a menina caminha diante de uma superfície refletora, o objeto está quebrado em diversos pedaços, impossibilitando descobrir seu rosto. A voz de Amen será importante na trama, no entanto, caberá ao público imaginar suas feições, gestos, maneira de se portar. Em outras palavras, o filme inteiro gira em torno de uma heroína que se encontra em cena, porém nunca será vista. Ao conversarem diretamente com ela, os coadjuvantes falam com a câmera e, por extensão, com o espectador.

Este procedimento provoca algumas consequências que convém discutir. Talvez o objetivo direto seja coincidir o olhar do público com aquele da mulher trans, buscando a forma máxima e utópica de identificação com a protagonista. Ora, esta equivalência faz com que a acompanhemos em tempo real, descobrindo seu campo de visão, porém acessando pouco da psicologia e dos sentimentos da garota - algo que seria facilmente visto no rosto da atriz, por exemplo. É possível que os criadores tenham desejado separar a identidade de gênero da imagem do corpo, afastando questões sobre passabilidade cis, genitalidade, aparência feminina. Aqui, a transexualidade diz respeito a uma identidade, ao invés da conformidade ou dissociação a um corpo específico. Pelas impressões de terceiros, deduzimos que Amen possui aparência feminina, porém incapaz de se confundir com uma mulher cisgênero - algo que não representa um defeito ou qualidade em si. O cinema tem se demonstrado tão obcecado pelo espetáculo do corpo de indivíduos transexuais, mergulhando de modo fetichista no meio de suas pernas (vide os pavorosos Transamérica, 2005, e Tamara, 2016) que se produz certo interesse a partir da valorização da subjetividade ao invés da aparência.

Em contrapartida, a ausência de um rosto com expressões torna a protagonista abstrata, difícil de compreender. Conforme é manipulada pelo milionário Naser (Mahdi Pakdel), que promete pagar pela cirurgia sem anunciar a contraparte desta oferta generosa, ela se transforma numa figura conformista, tolerando a perversão dele sem protestar, nem tentar fugir de fato da mansão onde é presa. Dependendo da "bondade de estranhos”, ela se deixa explorar. Os cineastas relegam Amen à postura de uma mulher passiva - por mais que se compreenda o estado de fragilidade em que se encontra, tendo pouco poder de negociação, ela poderia ao menos se impor, afinal, Naser também precisa dela para seus planos. Constantemente sedada, provocada e objetificada, ela sequer tenta investigar as reais intenções de seus algozes, deixar de tomar os remédios que lhe provocam perda de referências, ou se opor à revelação progressiva dos planos dos homens ricos. A heroína fica descontente com a descoberta, porém segundos depois, acata com a decisão de terceiros. Embora vejamos o mundo por seus olhos, Amen nunca controla a narrativa, nem se expressa enquanto indivíduo. Ela se reduz ao objeto de joguetes alheios.

Paira um desconforto em assistir à sucessiva tortura física e psicológica de uma mulher trans, durante longos meses. O calvário se espetaculariza, convertendo-se em fetiche para os prazeres da ficção. O suspense funciona muito bem, sustentando uma tensão inesgotável da primeira à última cena. Em contrapartida, ele o faz às custas da jovem trans, não com ela, ou junto a ela. Recentemente, na série Them (2021), destacava-se a necessidade de brutalizar uma família negra sem respiro, para poder criticar o racismo. Algo semelhante decorreria da tendência a violentar uma mulher trans para denunciar a transfobia. A representação do mártir já foi considerada, no cinema hegemônico dos anos 1950 e 1960, a maneira mais respeitosa de mostrar a comunidade LGBTQIA+, procurando despertar piedade por estes pobres sofredores. Passadas várias décadas, o espetáculo do sofrimento passou a ser relativizado, e começou a se exigir, com razão, que as obras parassem de solicitar a gentileza do público hétero e cis, priorizando o empoderamento de pessoas trans em contextos naturais e respeitosos. No caso da obra iraniana, o fatalismo impera. O aspecto de cautionary tale incomoda por associar a subjetividade trans à identidade explorada, mutilada, impossibilitada de felicidade ou completude. 

Talvez estas relativizações condigam apenas com o olhar ocidental, especificamente brasileiro, num país onde, apesar das inúmeras dificuldades, ainda se produz com frequência belas obras de temática LGBTQIA+. É possível que, para a cinematografia iraniana, esta constitua uma forma socialmente aceitável de discutir a temática trans sem cair nas malhas da censura, nem expor atrizes à criminalização, caso em que a pequena subversão dos cineastas seria exponencializada pelo contexto. O discurso a respeito da prisão de pessoas trans passa do físico ao simbólico - Amen tem sua liberdade restrita de outras maneiras. No entanto, para obter esta conquista, precisa abrir mão de fatores graves relacionados à dignidade humana. Pode-se ver uma metáfora para a prática do governo local como um todo, acreditando possuir o direito de controlar os corpos trans (algo que também ocorre no Brasil). Neste sentido, porta vigor político, ainda que falte se colar à protagonista e se dedicar a ela, ao invés do circo de maldades ao seu redor. Não é possível criticar a objetificação das minorias sem elevá-las à condição de sujeito.

Filme visto online na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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