Crítica
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Sinopse
Depois de voltar de uma viagem com R$ 5 milhões na conta, Marian pretende apenas seguir em frente sem olhar para trás. Contudo, seus encontros frequentes com Maria Eugênia podem significar algo além dessa vida terrena.
Crítica
Primeiro filme baseado num livro psicografado pela escritora Zíbia Gasparetto, Nada é Por Acaso engrossa as fileiras do cinema espírita brasileiro. E ele traz uma história moralista em que a crença situa atitudes machistas e sofrimentos como decorrências do caminho a ser percorrido para a remissão dos pecados de um passado remoto. Uma das protagonistas é Marina (Giovanna Lancellotti), jovem aspirante a advogada que aceita um acordo confidencial do qual sai R$ 5 milhões mais endinheirada e com um carro importado na garagem. A essa revelação segue-se a narrativa de tirar a mãe e o irmão da casa humilde e se mudar com eles para a capital paranaense em busca de uma vida nova. Mas, como é comum nesse tipo de produção de cunho religioso, os bens materiais não garantem felicidade, algo que será alcançado assim que ela aceitar o martírio (bem como as suas escolhas) enquanto parte de um processo determinado por forças maiores. Paralelamente, vemos outra mulher sofrida. Maria Eugênia (Mika Guluzian) tem um casamento aparentemente feliz com um sujeito atormentado por pesadelos constantes. E um ato realizado na França alimenta a culpa que a corrói causando dor. Novamente temos uma mulher rica, sem problemas financeiros pela frente, mas que não encontra sossego por conta de algo que lhe falta. O filme traça paralelos entre essas personagens para sugerir que um destino as conecta.
Em Nada é por Acaso as mudanças são abruptas e não há tempo para as pessoas assimilarem novos eventos, realidades e descobertas. Por exemplo, um menino repentinamente começa a psicografar cartas do além, imediatamente depois disso sendo levado a um centro espírita. Sem o mínimo de dúvida e hesitação, a criança aceita a mediunidade. Dentro da moldura abertamente melodramática, propensa a coincidências e a sentimentos manifestados de modo rasgado, o cineasta Marcio Trigo se esquece de carregar as curvas dramáticas com escalas e nuances. Alguém está no ponto A e vai ao ponto Z rapidamente, como se não houvesse um percurso entre origem e destino. Dentro da abordagem espírita, o filme abraça vigorosamente a ideia de que peças se encaixam por milagre tão logo desígnios divinos sejam aceitos e cumpridos. Então, o extremo sofrimento de alguém paralisado pela culpa se esvai repentinamente diante da revelação de que tudo não passa da reparação do curso interrompido em vidas passadas. Outro problema do filme é a teia artificial dos relacionamentos, caracterizada por encontros forçados e casualidades “justificadas” pelas linhas tortas do plano divino. Quando menos esperamos, cada personagem se conecta de modo insuspeito a outros. Portanto, é preciso colocar a crença no insondável acima da descrença narrativa para aceitar tudo.
Outro exemplo evidente da falta de consistência do longa-metragem é a cena de Maria Eugênia revelando à mãe que está sendo chantageada por uma traição conjugal. Ela anuncia que a conversa vai ser difícil, uma vez que tem sérias dificuldades com sua genitora bem-sucedida e mandona. Mas, o que vemos no papo é a jovem esposa vomitando insatisfações e esse desabafo curando milagrosamente uma relação citada antes como fraturada ao ponto de gerar angústia. Podemos dizer que Nada por Acaso submete o desenvolvimento narrativo à lógica conveniente do milagre, marcada por acontecimentos que não podemos/devemos questionar logicamente se quisermos usufruir de seus efeitos. No entanto, esse “mistério” não é um atributo explorado narrativamente como combustível do indeterminado, mas uma abordagem em que moram as conveniências. Transformações abruptas, resoluções súbitas, arrependimentos redentores e curativos para a culpa que consome a dupla protagonista. Tudo isso é colocado na conta daquilo que nem sempre os olhos veem. No entanto, cinematograficamente, estamos diante de um filme em que os personagens são meras cascas e valem apenas o quanto pesam suas representações dentro do arquétipo religioso. A culpada, a sofredora, o marido penitente, o estranho mensageiro, o espírito explicativo, as mães que salvam e são salvas. Tudo é simples.
Além do mais, Nada é Por Acaso às vezes é bastante questionável. E o grande representante desse ruído é o personagem Rafael (Rafael Cardoso). Terapeuta com inclinações espíritas, ele é o homem que serve para guiar a sofredora maior ao caminho da luz. Contudo, o filme “passa pano” para um machismo atrelado à lógica patriarcal de boa parte das doutrinas religiosas. Rafael invade a intimidade de Marina, chegando ao cúmulo de mandar investigar a sua vida pregressa, e isso não é encarado pelo filme de maneira ao menos crítica. Pior. Esse ataque à individualidade da mulher amada é compreendido como “meios justificando os fins”, ou seja, uma atitude reprovável imediatamente sendo aprovada por levar à revelação de uma verdade purificadora. As mulheres são tipificadas no filme como seres frágeis e à mercê da culpa, enquanto os homens são vítimas de algo que diz respeito essencialmente às escolhas delas. Vide a história mirabolante criada para justificar o calvário de Henrique (Tiago Luz) ou a cena do bebê regredindo. Marcio Trigo não desenvolve bem o trânsito entre segredos e verdades expiatórias. As surpresas são sufocadas pelo esquematismo. É fácil saber o que acontece quando captamos o modus operandi dessa narrativa. Para arrematar, surge um Deus Ex-Machina, o momento em que todas as explicações são dadas, os perdões são alcançados pela verdade e o moralismo se escancara na criminalização do aborto, algo que deveria ser encarado sem tanta leviandade.
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