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Sinopse

Joca, um jovem de treze anos, descobre o amor quando conhece Basano, uma menina paraguaia. No entanto, para conquistá-la, Joca passará por grandes dificuldades relativos a problemas de fronteira entre o Brasil e o Paraguai e a relação seu irmão Fernando, um homem que pertence a uma perigosa gangue de motociclistas.

Crítica

O cineasta Felipe Bragança recorre, sobretudo, à palavra para construir o breve prólogo de Não Devore Meu Coração, uma recordação dos resultados nefastos da histórica Guerra do Paraguai, da dizimação do povo guarani. Ao longa, desde o princípio, portanto, é imprescindível a utilização do passado para tratar tensões contemporâneas como heranças das quais dificilmente se pode fugir. Um dos antídotos à intolerância é justamente o amor, sentimento que aparece como forma de unir lados opostos, mais especificamente, neste caso, o garoto Joca (Eduardo Macedo) e a paraguaia Basano (Adeli Benitez). Numa das primeiras cenas em que os vemos interagir, o rio Apa, curso fronteiriço entre Brasil (Mato Grosso do Sul) e Paraguai, se coloca entre eles como força simbólica, um fluxo ininterrupto e soberano, pois natural, ou seja, análogo ao próprio tempo. E nessa aproximação, numa cena belíssima, ela “captura” o coração dele, deixando-o a mercê de um sentimento que deveria contrapor o ódio.

Paralelo às desventuras humanas de Joca, há o percurso particular de seu irmão mais velho, Fernando (Cauã Reymond), integrante da Gangue do Calendário, grupo de motoqueiros igualmente em pé de guerra com seus semelhantes paraguaios. Felipe Bragança trabalha constantemente aqui com sortidas camadas de mitos, cruzando cronologia, História e totens da sociedade atual, como as motocicletas, dentro de um imaginário que comporta, assim, múltiplas formas de representar o que verdadeiramente é tido como valoroso. Nas competições de velocidade, muito bem filmadas, especialmente do ponto de vista plástico, os homens feitos medem força, aliás, atributo este que, após mais de um século pós-guerra, para muitos continua sendo o que define conquistadores e dominados. Enquanto Joca opta por seguir o coração, fazendo da paixão a sua lança, Fernando prefere vestir-se de cavaleiro moderno para tentar subjugar o adversário e vencer na marra. São abordagens quase antagônicas.

Felipe Bragança privilegia em Não Devore Meu Coração as alegorias, mais precisamente a justaposição de vários tipos delas. Dessa maneira, o estranhamento da emersão de uma espada das profundezas do rio se justifica plenamente pela forma como o objeto evoca o outrora, fazendo-se relevante no agora por conta de sua carga de significados. Dentre os adolescentes, o possuidor da arma está, em tese, à frente. Já ao observar mais detidamente Joca, o realizador consegue aprofundar as relações familiares. O ataque de raiva com a mãe, a vista ao pai que trata sua carência e iminente danação com desdém, são sintomas de uma trajetória pregressa acidentada, nunca acessada diretamente, mas deflagrada nas entrelinhas por um roteiro que propositalmente provoca solavancos para sublinhar as pequenas elipses de sua estrutura porosa, nem sempre incisiva ou mesmo sintética, mas aberta aos elementos de fontes heterogêneas que alimentam e destacam as tramas calcadas em amores e dores.

E essas referências a diversas mitologias, de nascentes bastante distintas, são imprescindíveis. Fernando, que apelida o irmão de Wayne, é chamado por ele de Clark, alusões diretas às identidades de Batman e Superman. Os motoqueiros surgem na tela como se fossem os Cavaleiros da Távola Redonda, todavia seguindo um mentor cuja sabedoria vem do asfalto, da vivência num entorno ordinário. O personagem de Cauã Reymond, ainda, é alcunhado de “príncipe”, simplesmente por ser filho de César (Leopoldo Pacheco). Esse somatório pesa um pouco em determinados momentos, transparecendo uma necessidade nem sempre produtiva de estofar a narrativa de signos-âncora. No geral, paradoxalmente, é exatamente a articulação, no mais das vezes habilidosa, desse recurso singular do qual Felipe Bragança lança mão que permite a comunicação entre as camadas fabulares evidenciadas. A agressividade e o afeto se alternam violentamente neste filme poético que necessita da nossa estrita adesão para reverberar.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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