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Sinopse

Sarah acaba de fugir de casa devido aos conflitos com a mãe. Enquanto dorme num parque da cidade, começa a ter sonhos assustadores. Ela descobre a existência de um estudo na universidade local voltado às pessoas com distúrbios de sono, e integra o programa. No entanto, Sarah logo percebe que os cientistas possuem intenções diferentes do que imaginava. Enquanto isso, o horror de seus sonhos parece cada vez mais real.

Crítica

Alguns dos filmes de gênero mais empolgantes apelam aos horrores da nossa imaginação, ao invés de ostentarem monstros e fantasmas. Nenhuma imagem do cinema será tão assustadora quanto aquela criada pelo próprio espectador, dentro de uma sala escura, projetando na ficção suas fobias e experiências de vida. Por isso, obras voltadas ao poder da sugestão, deixando margem de interpretação, costumam ser muito mais estimulantes do que o espetáculo explícito. Não Feche os Olhos (2020) se insere na linha de obras que manuseiam excepcionalmente bem o não-dito, por meio de insinuações e metáforas. O diretor Anthony Scott Burns trabalha sobretudo com a representação de estímulos anti-imagéticos por natureza: a experiência do medo durante pesadelos, o desejo erótico, a sensação de estranhamento social. O audiovisual é capaz de representar uma cena perturbadora e afirmar, via montagem, que corresponde aos sonhos de alguém. No entanto, a proposta deste filme vai além, questionando a vontade de acessar os sonhos alheios. Que conhecimento seria extraído pelos cientistas e psicólogos caso pudessem assistir aos nossos fluxos inconscientes, como numa tela de cinema?

Não Feche os Olhos (péssimo título brasileiro para o original, próximo de “Tornar-se Real”) lida com os limites éticos do conhecimento. Considerando que sonhos e pesadelos constituem nossas pulsões mais íntimas, teríamos o direito de assistir à produção alheia? Agiríamos em nome do avanço científico, ou de nosso voyeurismo? O cineasta explora com igual eficiência as duas vertentes. Quando Sarah Dunne (Julia Sarah Stone) se registra num estudo para pessoas com distúrbios do sono, mistura-se perigosamente o protocolo acadêmico e a observação fetichista. “Você fica me observando dormir”, reclama a garota. Ao descobrir os pesadelos rebuscados da protagonista, o pesquisador Jeremy (Landon Liboiron) adquire um interesse pessoal nela, passando a segui-la. Em tempos de exposição íntima nas redes sociais, quando as pessoas mostram em tempo real suas viagens, seus corpos, sua comida e seus quartos, a noção de “seguidor” se torna próxima à figura do stalker. Jeremy literalmente segue Sarah, como se pudesse compreender melhor os pensamentos dela ao acompanhá-la na biblioteca e no cinema. Dentro da sala escura, o rapaz observa a garota que observa a tela, onde um filme de terror mostra uma mulher presa nas garras de um agressor. As noções de abuso (físico, psicológico) e de erotismo do olhar (a pulsão escópica) se retroalimentam.

Neste sentido, a obra fornece associações fascinantes entre os pesquisadores do sono e os espectadores do cinema. Estamos todos assistindo às imagens alheias, vendo figuras sem consciência de estarem sendo observadas, para o nosso prazer cômodo, sentados numa sala escura distante. Burns faz questão de intermediar esta relação por telas pequenas, móveis, compatíveis com a nossa experiência com computadores pessoais e tablets. Jeremy e a equipe do doutor Meyer (Christopher Heatherington) passam noites em silêncio diante desta programação sedutora dos sonhos alheios, onde existem monstros, formas geométricas e borrões fantasmáticos decorrentes da baixa qualidade da gravação. Novamente, o cineasta opta por não revelar o conflito em detalhes, sugerindo medos através da insinuação de inimigos batizados de “Sombras”. Sarah descobre o desejo sexual de Jeremy através de uma tela, ao vivo, e aos poucos os monitores posicionados lado a lado (ou seja, unidos por esta espécie de montagem analógica e intradiegética) permitem conceber sonhos compartilhados, com participantes da pesquisa imaginando o mesmo vulto negro.

O diretor dispensa as mortes, além das criaturas emitindo sons temerosos. Ele prefere a possibilidade justificar o horror pela curiosidade humana inerente. Tanto os jovens testados quanto os cientistas estão em busca do perigo: são eles que se movimentam em direção ao terror – e na sequência final, literalmente caminham em direção à morte simbólica. O duplo registro entre o real e o imaginário, entre o revelado e o sugerido, se resolve esteticamente através de outra dicotomia: o retrógrado e o futurista, ou ainda o passado e o futuro. O roteiro concebe tecnologias avançadas de neurociência, além de uniformes próximos da ficção científica para captar estímulos durante o sono. Em contrapartida, as roupas dos pesquisadores, os cortes de cabelo e estilos de óculos sugerem um teor próximo dos anos 1980. Apesar dos monitores no laboratório, os computadores e telefones celulares desempenham função mínima, sendo praticamente ignorados pela protagonista (pelo menos, até os 30 segundos finais). O criador concebe um universo atemporal e distanciado, pois repleto de iconografias conhecidas recombinadas de modo que não correspondam a nenhum período específico. A exemplo dos sonhos, a trama “real” (atenção às aspas, neste caso) se desenvolve numa dimensão espaço-temporal própria.

Quanto aos pesadelos de Sarah, Não Feche os Olhos oferece sequências deslumbrantes em termos estéticos e narrativos. Burns desenvolve cenas muito diferentes, apesar de coerentes em estilo e ritmo. Durante o mergulho no inconsciente da garota, a câmera sempre efetua um movimento ininterrupto para frente, penetrando grutas, atravessando portas secretas, percorrendo saguões repletos de cadáveres flutuantes e chegando à Sombra, também chamada de “Self” (ego). A propósito, as implicações psicanalíticas desta fábula, que menciona “Anima”, “Animus” e a noção de “Persona”, são evidentes e intricadas, incluindo a relação turbulenta da protagonista com a mãe e o referencial paterno e castrador do Dr. Meyer com seus alunos. Os trechos inconscientes ocorrem sem diálogo nem explicação. Durante as cenas naturalistas, o filme explora espaços estranhamente vazios (a casa, o corredor da escola, a cafeteria, a lavanderia, a autoestrada), reforçando o estranhamento próximo ao realismo fantástico. A escolha da textura de imagens (entre a granulação da película e a pixelização do digital), as luzes de lâmpadas, azuladas e cansativas aos olhos, e a trilha sonora do Electric Youth, mistura de guitarras contemporâneas com temas antigos, expande ao espectador a noção de irrealidade – ou ainda de sonambulismo, delírio e projeção, todos devidamente aprofundados na trama.

Desde Corrente do Mal (2014), o cinema norte-americano independente não apresentava uma obra de horror tão instigante no estudo do impacto profundo das imagens na psique humana. A atuação brilhante de Julia Sarah Stone relembra o impacto produzido por Maika Monroe na produção de 2014, ou a revelação da descoberta de Julia Garner em A Fita Azul (2012) e Somos o que Somos (2013). Poucas atrizes conseguem explorar em profundidade a androginia, a mistura de desprezo e interesse, ou de respeito e asco pelos cientistas. Ela se sobressai na sequência onde o ato sexual combina orgasmo e medo da morte, levando à sugestão de que a sombra aterrorizando a garota seja uma versão de si própria. Assim como a protagonista de Corrente do Mal, Sarah carrega o horror consigo, sendo impossível se dissociar da angústia sem morrer – embora consiga aliviá-la por meio do gozo, da perda de controle. O tormento de ambas as garotas está conectado a uma sociedade depressiva, individualista, dentro de famílias problemáticas. Burns e David Robert Mitchell encontraram duas metáforas magníficas para o mal-estar na contemporaneidade, traduzido no medo do outro, e em última medida, no medo do encontro consigo mesmo.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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