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Crítica


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Sinopse

Ao longo de 55 anos de profissão, o fotógrafo Orlando Brito retratou instantes variados, do ocaso de carreiras artísticas aos momentos conturbados do Brasil em meio a uma ditadura. O olhar dele foi testemunha e filtro.

Crítica

É importante resgatar com frequência o debate a respeito do roteiro em documentário. Há quem diga que documentários não têm roteiro, ou então que ele constituiria uma lista de temas que o autor pretende abordar. Ora, o roteiro vai muito além da delimitação do objeto de estudo: ele constitui uma estrutura, um caminho narrativo, um procedimento pelo qual as imagens devem se conectar entre si para veicularem um discurso específico. A intenção inicial pode mudar, como convém a qualquer processo criativo, inclusive na ficção. No entanto, ao invés de o quê será abordado, o roteiro abarca a questão do como. Não é incomum encontrar algum cineasta comentando um novo projeto documental em andamento: “Já comecei a fazer as entrevistas, depois vamos ver como a gente coloca tudo isso junto”. Soa um alerta vermelho na cabeça do interlocutor. Grandes documentários já nasceram de tamanha dispersão criativa. Entretanto, em muitos casos, o resultado é uma sucessão de entrevistas e materiais de arquivo, intercaladas academicamente, sem ambição narrativa nem reflexão de linguagem. Nestes casos, o cinema documental se aproxima da reportagem televisiva.

Estes questionamentos vêm à mente diante de um projeto como Não Nasci para Deixar meus Olhos Perderem Tempo (2019). O diretor Cláudio Moraes evidencia a intenção de valorizar a obra do fotógrafo Orlando Brito, que acompanhou de perto transformações fundamentais da política brasileira. Decide-se então solicitar ao artista que comente o processo de criação de cada fotografia icônica: onde ele se encontrava, como aquele instante exato se produziu em termos de contexto, iluminação, enquadramento. E só. A enxuta duração do longa-metragem se resume a Brito esmiuçando os bastidores, como se folheasse um álbum de memórias entre amigos. Da primeira à última cena, ele explica foto por foto. Estas confissões de making of poderiam constituir o fragmento válido dentro de um estudo mais aprofundado sobre o artista. No entanto, elas são insuficientes para alimentar um filme inteiro. O procedimento não se desenvolve nem evolui. As cenas-comentários (algumas delas curtíssimas, com menos de um minuto) poderiam ser organizadas em qualquer outra ordem, sem prejuízo do discurso final. A estrutura inteira se concentra em torno de encontros semelhantes em termos de tom e filmagem, com o protagonista comportadamente posicionado no centro do quadro.

Este espectador privilegiado testemunhou inúmeros processos de construção e destituição do poder (incluindo a ascensão e queda de Fernando Collor e Dilma Rousseff), no entanto, Brito jamais revela o que pensa sobre a política. O que estes olhos atentos e repletos de poesia teriam aprendido após tanta experiência perto dos poderosos? De que maneira sua arte teria se desenvolvido ao longo do tempo? O que pensaria sobre o uso político de suas imagens pelos veículos aos quais contribuiu, do Jornal do Brasil à Caras e à Veja? Como enxerga o trabalho de outros colegas de profissão, outras abordagens do fotojornalismo? O artista comenta elementos muito específicos (o encontro com as pessoas fotografadas, a pose exata em que se encontravam, a despedida pós-foto), despidos de uma reflexão mais ampla. O cineasta tampouco busca compreender por si próprio a importância destas fotografias. O que Moraes teria a dizer sobre este trabalho, além da óbvia apreciação do mesmo? O documentário está disposto a escutar o que o protagonista tenha a lhe dizer, e nada mais. Assim, limita-se a uma entrevista excessivamente descritiva e fatual. Como um projeto tão próximo do Planalto, literalmente falando, poderia ser tão isento de posicionamento sobre a política brasileira? (A não ser que se considere a isenção enquanto posicionamento político, é claro).

Em conjunção com esta estrutura, a montagem se revela bastante limitada. Há dois procedimentos-chave repetidos à exaustão da primeira à última imagem: o fade na passagem entre as cenas, e o zoom-out para revelar as fotografias de Brito. Não se busca o choque entre as imagens, a possível comunicação entre retratos distintos, uma espécie de evolução ou ironia dentro desta narrativa – seja quanto ao estilo do fotógrafo, seja sobre a política nacional. A apresentação dos stills é particularmente problemática, por supor que o elemento mais importante da imagem se resumiria ao rosto da pessoa fotografada, para só então a imagem se “abrir” e revelar o espaço ao redor. Quando a edição enfim permite que a fotografia completa seja vista como Brito a concebeu, no tamanho e proporção originais, ela é rapidamente retirada de cena por um novo fade levando à cena seguinte. Se o cineasta admira tanto o trabalho do fotógrafo, por que não permite ao espectador admirar as imagens enquanto tais, em sua integralidade, com tempo suficiente para percebermos sozinhos os detalhes? Afinal, o enquadramento, o espaço, a luz, as texturas de uma imagem são tão importantes quanto a pessoa fotografada. Novamente, os fades e zooms seriam justificáveis dentro de um projeto mais complexo, no entanto, quando constituem a totalidade da linguagem, elas simplificam demais a dinâmica do filme, tornando-o repetitivo.

Talvez a intenção do diretor seja criar uma obra assumidamente descompromissada, um mero encontro entre dois amigos (ou três, visto que as entrevistas são feitas por Rita Nardelli). Entretanto, o trabalho de Moraes se mostra em descompasso, mesmo em oposição, àquele de Brito. O fotógrafo trabalha na chave da precisão de enquadramento, de luz, de atenção – em outras palavras, ele trabalha na construção de algo que ninguém mais vê. O fotógrafo é criador de momentos, imortalizando instantes efêmeros e detectando a beleza do instante. O cineasta, em contrapartida, não demonstra preocupação equivalente com sua própria construção de imagens ou rigor estético (vide a simplicidade dos instantes em que se acompanha Brito durante uma sessão de fotos, com a câmera na mão e a luz superexposta). Não Nasci para Deixar meus Olhos Perderem Tempo oferece muito pouco por conta própria, limitando-se à humilde tarefa de exaltar a criação alheia. O cinema traria uma possibilidade muito mais interessante de contraponto entre a imagem estática e a imagem em movimento; entre a política vista por Brito e aquela vista por Moraes; entre a percepção das fotos por seu criador e a interpretação do cineasta. Haveria uma chance enriquecedora de diálogo, ao invés de um monólogo.

Filme visto online no 25º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, em setembro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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