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Sinopse

O Dr. Randall Mindy é um astrônomo pouco conhecido na Universidade de Michigan. Quando sua aluna Kate Dibiasky descobre um cometa gigantesco em rota de colisão com a Terra, eles correm para alertar as autoridades do perigo de extinção da humanidade em cerca de seis meses. No entanto, a presidenta e a mídia demonstram pouco interessem em escutar as más notícias. Começa uma corrida contra o tempo para alertar a população mundial.

Crítica

Não Olhe para Cima (2021) oferece uma sátira corrosiva da descrença contemporânea na ciência. E também do desprezo da classe política por aquilo que não lhe traz votos. E também das fake news, do armamento desenfreado, do mundo das aparências, da cultura do entretenimento, da mídia caça-cliques, da disputa de narrativas, da ignorância da história e geografia, do elitismo nas grandes universidades, da vaidade das celebridades, do culto a empresários gananciosos, da necessidade simbólica de heróis, da interferência política pelo empresariado, da obsessão por Internet e smartphones, do desgaste emocional pós-Covid-19, do hedonismo, do individualismo, da paranoia das classes populares e da manipulação pelas classes privilegiadas. Os alvos deste projeto são tão amplos quanto sua duração e o número de estrelas presentes no elenco. O diretor e roteirista Adam McKay mira um leque extremamente vasto do “estado das coisas”, apontando tudo aquilo que, ao seu ver, estaria deslocado na sociedade contemporânea — com foco nos Estados Unidos, é claro. A amplitude do discurso poder se traduzir na força ou na fraqueza da obra, caso se considere o valor de abarcar tantas questões, ou o demérito de não se aprofundar em nenhuma delas. Abrindo-se a um panorama devastador de tudo e todas as coisas, o filme foge à responsabilidade de analisá-las em profundidade.

Nenhum personagem se desenvolve ao longo da narrativa. Visto que constituem caricaturas, ou tipos destinados a representar setores específicos (a ciência, a política, a mídia), restam presos às suas características principais. Isso significa que o Dr. Randall Mindy (Leonardo DiCaprio) sofrerá com a timidez e os ataques de pânico do início ao fim, a aluna Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence) terá um comportamento explosivo até o desfecho, a presidenta Orlean (Meryl Streep) se renderá sempre ao discurso populista, e assim por diante. Os atores se divertem nesta paródia de figuras conhecidas do imaginário popular, dentre as quais Donald Trump, Bill Gates/Steve Jobs e as divas pop da música americana. Resta saber se o público se divertirá com igual intensidade face ao jogo de adivinhações. Uma vez identificada a persona ridicularizada por cada um deles, a composição se repete e os tiques se multiplicam durante 145 minutos. O cineasta gosta de atribuir aos atores dentes falsos, perucas artificiais, figurinos bizarros e grandes robôs para brincarem. Ele transmite a impressão de um garoto criativo, dispondo de muitos bonecos caros com os quais pode inventar qualquer traquinagem desejada. A ausência de limites, ou de objetivos precisos, se reveste da impressão de liberdade criativa. 

Na intenção de levar esta forma de humor a um público amplo — afinal, a caríssima produção da Netflix precisa se rentabilizar —, os criadores embrulham essa aventura tresloucada numa aparência pós-moderna. Em outras palavras, apostam na estrutura típica de um programa de esquetes, inserindo os atores em algo próximo de um episódio estendido de Saturday Night Live. Os enquadramentos nervosos movem-se de um lado para o outro bruscamente, enquanto a comicidade depende dos diálogos e do jogo cênico. Há pouca subversão em termos estéticos, no sentido de encontrar enquadramentos engraçados ou improváveis, brincadeiras com a profundidade de campo ou o espaço fora de quadro — recursos que Wes Anderson e os irmãos Coen explorariam com facilidade. McKay privilegia as falas inesgotáveis, provocadoras, sarcásticas. Enquanto isso, o montador Hank Corwin se esforça bastante para conseguir sua primeira estatueta do Oscar. Ele fragmenta o ritmo da edição, introduz sequências de inserts velocíssimos, interrompe cenas no auge da ação e efetua associações improváveis, nos moldes de um adolescente entediado, deslizando o dedo pela timeline de sua rede social favorita. A montagem chama atenção excessiva a si própria, ao invés de colaborar à fluidez do conjunto — gesto percebido como virtude pelas premiações da indústria.

Entretanto, devido à ausência de relevo e variação de tons, o filme corre o risco de esgotar com rapidez o caráter incendiário da premissa. Não Olhe para Cima representa uma obra de constatação a respeito da crise institucional. O diretor é capaz de observar diversos pontos questionáveis da organização política e social norte-americana. Em contrapartida, nunca interrompe seu rolo compressor para se questionar de que modo chegamos a tal estado, que diversidade interna ele possui, por qual caminho poderíamos sair dele, que horizontes se apresentam para além do apocalipse. O roteiro remete àquelas figuras folclóricas que ocupam os balcões de bares populares, alcoolizadas, gritando que o mundo está perdido, nenhum político presta, vamos todos diretamente para o fundo do poço — ou para a colisão com um cometa. Segundo esta perspectiva, republicanos e democratas se equivalem, os veículos de mídia seriam idênticos, e a ciência possuiria voz única. Afinal, não se encontram discursos alternativos à grosseria da presidenta Orlean, ao humor forçado do canal popularesco de televisão, e ao gesto patético dos americanos caipiras que tentam destruir o astro gigantesco à base de tiros. Politicamente, a mensagem do tipo “tudo está perdido” produz a forma de conformismo que resultou, em grande parte, na descrença da política enquanto veículo transformador. O mantra acrítico “ninguém presta” decorre de uma moral fundamentalmente reacionária.

Isso nos ajuda a refletir a respeito do estado do cinema político, sobretudo do humor — aquele com maior penetração popular, e por isso, dotado de forte responsabilidade quanto à sua representação do real. Robert Altman já propôs comédias corrosivas sobre o mundo do espetáculo em O Jogador (1992), e da imagem midiática em Prêt-à-Porter (1994), enquanto os irmãos Coen destrincharam o caráter assustador da busca pela fama em Barton Fink: Delírios de Hollywood (1991). Woody Allen, em sua fase ambiciosa de 30 anos atrás, criticou a intelectualidade em Zelig (1983) e os jogos do poder no entretenimento em Tiros na Broadway (1994). Tratava-se de iniciativas que elegiam um foco e, a partir dele, esmiuçavam as possibilidades de subversão ou caricatura da realidade. As obras aproximavam-se do horror, do surreal ou do realismo fantástico, algo conveniente à estratégia estética e narrativa de distanciamento do referente para melhor observá-lo. Em chave oposta, McKay mergulha com prazer desmesurado no espetáculo do caos, evitando fornecer qualquer forma de distanciamento crítico. Ele deseja fazer rir a todo custo, indicar novos alvos de sátira sem parar, numa estrutura insistente e veloz que resulta avessa à reflexão. 

Uma comédia verdadeiramente política precisa incomodar, perturbar, articular um discurso claro a respeito do funcionamento do mecanismo criticado. A política implica em tomada de posições. Aqui, o diretor se contenta em brincar com os problemas sociais, sem romper com os mesmos — em outras palavras, ele reproduz a lógica do entretenimento efêmero e inconsequente que finge atacar. Nem direitistas, nem esquerdistas; nem setores específicos da mídia ou da ciência se sentirão particularmente visados pela argumentação disposta a debochar de todos os espectros com igual intensidade. Por fim, esta iniciativa tem pouco a dizer a respeito de qualquer um dos tópicos abordados. Com seu orçamento confortável, estrelas no elenco e plataforma de lançamento de luxo, Não Olhe para Cima acredita ser mais complexo e profundo do que realmente é. Ele corresponde à lógica atual da “política de lacração”, para a qual basta se gritar mazelas ao invés de tomar uma atitude concreta contra elas. O ativismo de sofá e a militância de Facebook encontram seu equivalente cinematográfico neste filme divertido em diversos momentos, e um tanto vazio quando se encerra. Ele alerta, da primeira à última cena, que as coisas vão mal. Alguém ainda precisava deste aviso? Por esta perspectiva, visto que estamos mergulhados no caos, é melhor rir da catástrofe — e deixar as coisas como estão.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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