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Sinopse

A grana da desempregada Antônia está cada vez mais curta. Por isso, ela incita uma revolta dos sem dinheiro para pagar a conta, depois precisando esconder a balbúrdia do marido certinho e da polícia que investiga o caso.

Crítica

A ideia de uma comédia subversiva onde mulheres fazem uma rebelião e saqueiam o mercado do bairro, em protesto aos preços abusivos, soa particularmente relevante em 2020. Ainda que o texto provenha de uma peça de teatro italiana de 1974, ela corresponde bem às crises morais decorrentes do colapso financeiro do país: todo mundo sabe que roubar é errado, mas quando se passa fome, o imperativo de sobrevivência não se sobreporia à lei? Se as grandes autoridades do país roubam quantias imensas sem serem punidas por isso, por que os pequenos moradores de classe média-baixa de uma cidadezinha não poderiam roubar um saco de arroz? O roubo das mulheres seria mais grave do que o “roubo” do dono do supermercado, superfaturando preços para sustentar a margem de lucro? Poucas comédias populares apostam num ponto de partida tão arriscado, e ao mesmo tempo tão interessante. O humor, neste caso, não provém do escapismo a um mundo idealizado, mas da capacidade de olhar a nós mesmos de maneira crítica. Afinal, o casal formado por Antônia (Samantha Schmütz) e João (Edmilson Filho) representa a realidade da maioria dos brasileiros, integrante de grupos que necessitam de auxílios emergencial e outros programas de renda para sobreviverem.

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Não Vamos Pagar Nada (2020) parte de uma notável constatação sociopolítica. Percebe-se não apenas a miséria, mas também as desigualdades de renda e de gênero, a exploração do trabalhador, a falta de consciência de classe (ilustrada por Paulinho Serra e Criolo, dois funcionários explorados que defendem o patrão) etc. Os protagonistas não se tornam alvo de uma condenação moral, nem pelo roubo, nem pela situação financeira em que se encontram. Mesmo assim, a descrição da vida dos personagens soa excessivamente simplificada, ao limite do infantil. O olhar sonhador da mulher desempregada diante de um prato de comida, a sequência inicial com várias pessoas pobres de aparência triste e o caráter vilanesco do dono do mercado nos preparam para uma fábula em que os moradores se convertem em pobres coitados diante de um grande vilão. A caracterização acentuada nos permite a identificação com as mulheres ladras: afinal, elas estão roubando a comida de um sujeito realmente asqueroso, por isso não as condenamos. Ora, se o patrão fosse sorridente e gentil, o roubo ainda seria justificável? Afinal, a fome das pessoas continuaria a mesma. O texto evita as nuances onde se instauraria um verdadeiro debate ético, preferindo o duelo universal, e também mais superficial, do bem contra o mal.

A premissa política logo se interrompe para dar espaço aos quiproquós típicos da farsa. Para esconder o roubo, a amiga Margarida (Flávia Reis) cria uma falsa barriga de grávida com os produtos dentro. Cabe então explicar ao marido e aos conhecidos a gravidez repentina, sem denunciar o crime. O conflito funciona dentro do universo lúdico dentro do qual as mulheres possuem a coragem e o conhecimento, enquanto os homens, todos patéticos, sequer conhecem o funcionamento básico de uma gestação. No entanto, a piada da gravidez se estende por uma duração impensável. Mais de metade da narrativa se concentra na ocultação da barriga, nas piadas com contrações, desmaios, bolsa estourando etc. Aos poucos, o filme desvia a atenção do roubo em si para brincar com a noção do corpo prostético, falso, deformado. Antônia poderia planejar outros roubos, organizar as mulheres para uma fuga em conjunto, articular uma desculpa comum a todas, ou qualquer outra alternativa de ordem coletiva. Ela poderia se tornar líder, ou aderir a outra liderança. Ora, o roteiro abandona a noção de coletividade, abraçando o caos do “cada um por si”. A protagonista não elabora qualquer reflexão pessoal a partir do roubo repentino. Em outras palavras, o gesto subversivo não se converte em pensamento crítico.

Mesmo assim, é um prazer encontrar bons atores de comédia capazes de imprimir ritmo ao texto. Samantha Schmütz trabalha bem a velocidade e o teor despojado dos diálogos, enquanto Edmilson Filho atenua os trejeitos de humor físico aplicados às suas obras mais famosas. Fernando Caruso e Flávia Reis, capazes do exagero quando solicitado, demonstram prazer na transição entre o patético assumido e o caráter mais terno da fábula – com destaque para a cena em que Antônia “dirige” a amiga, pedindo sucessivas interpretações de medo, cansaço, alegria etc. Infelizmente, os bons momentos são embalados numa estética televisiva, dentro de espaços com aparência de estúdio. Os personagens interagem muito pouco com o espaço físico da casa, limitado a um pano de fundo para os embates verbais. Em se tratando de um filme a respeito de uma revolução das ruas feita pela vizinhança, os espaços abertos e públicos mereceriam maior atenção. A insistência no recurso da gravidez se esgota com tamanha rapidez que o segundo terço, e sobretudo o terço final soam como tentativas forçadas de sustentar o longa-metragem a partir de uma piada só. As gags de João preso no armário (sem real motivo para tal), a cena excessivamente escura sobre Santa Eulália e o imbróglio envolvendo comida de cachorro são introduzidos a fórceps, e jamais se desenvolvem a contento. Em paralelo, os diálogos explicitam um código que só se justificava pela ingenuidade, porém se enfraquece quando sublinhado (“Eu estou grávido de um alface!”).

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De modo geral, Não Vamos Pagar Nada possui uma ótima premissa, sem saber como desenvolvê-la. O melhor indício da dificuldade em adotar um posicionamento político firme se encontra na conclusão. O destino oferecido ao patrão soa como uma concessão ao status quo face ao início progressista, além de incluir outros dilemas pouco explorados até então (a comida mofada e a ração de cachorro). Ou seja, o personagem não seria suficientemente condenável “apenas” por estipular preços absurdos, sendo necessário criar outros elementos imorais para que ele seja considerado digno de punição. O desfecho entre as mulheres proto-revolucionárias e o patrão malvado se converte num amplo gesto de conformismo, onde tudo termina em pizza, ou quase isso. Caso a impunidade fosse criticada pelo projeto, ela poderia fornecer um discurso forte. No entanto, a comédia realmente acredita no aperto de mãos que não soluciona nenhum problema em si: ele não dá emprego a Antônia, nem resolve a questão dos preços, ou ainda atenua a miséria das pessoas. O elemento mais triste diante de uma comédia potencialmente sulfurosa é constatar a concessão à promessa de domesticar os personagens e suspender os conflitos magicamente. Ora, nenhuma mudança política é feita somente de sorrisos e boas intenções.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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