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Crítica
Em Naomi Campbel a ficção atravessa o documentário e vice-versa. A protagonista é Yermén, transexual colombiana que vive na capital chilena a expectativa de conseguir dinheiro para bancar a almejada cirurgia de redesignação sexual. Pessoa e personagem se confundem, não sendo possível identificar com clareza as fronteiras nessa trama repleta de frescor. Desde o princípio, os cineastas Camila José Donoso e Nicolás Videla permitem a convivência de suportes audiovisuais e, por conseguinte, de texturas distintas. A moradora de uma área marcada pela vulnerabilidade social, por ela identificada como favela, deflagra esse espaço empobrecido por meio da granulada imagem de vídeo. Munida da câmera, materializa sua visão desiludida, procedendo de modo semelhante, inclusive no que tange à simbologia, quando se depara com um grupo de homens potencialmente encrenqueiros, registrando a despeito dos protestos dos sujeitos antes comparados aos cães.
Os realizadores fazem dessa transexual uma figura carismática, cujo desejo de ter uma genitália feminina é interditado pela falta de condições materiais. Algo bastante sublinhado pela dupla que conduz essa jornada destituída de rompantes são as peculiaridades de Yermén, sobretudo as atreladas ao esoterismo, perceptíveis na reverência ao tronco de árvore abandonado. A respeito dele, a taróloga que atende clientes por telefone tece uma interpretação muito singular, relacionada à comunicação umbilical com a natureza e os supostos poderes do que foge ao âmbito puramente concreto e visível. Naomi Campbel é centralizado tanto na protagonista quanto num instigante jogo cinematográfico que comporta diversas tentativas de evocar as dimensões intangíveis concernentes ao sagrado. O corpo, compreendido como templo no mais das vezes, para ela exibe um desacordo com sua concepção existencial. Yermén atrela disfunções a essa discrepância que a martiriza.
Naomi Campbel incorpora personagens secundários aparentemente descartáveis, mas que servem de gatilhos à instauração de outras, e sutis, camadas de Yermén. A vizinha idosa representa a conjuntura próxima à esfera familiar, com uma comunicação sintomática das carências de ambas e do afeto que cultivam mutuamente. O namorado, além de configurar a instância amorosa, permite que a protagonista entre num curioso conflito por realmente entender-se ampla e irrestritamente como mulher. O fato do rapaz lhe pedir, inesperadamente, o exercício de um papel ativo durante o sexo é encarado como afronta, rapidamente tida como motivo suficiente ao término. Esse conflito está na base da concepção de uma personagem disposta a expor-se publicamente, por falta de alternativa, se isso garantir-lhe a realização do sonho de ter uma vagina ao invés de um pênis entre as pernas. O título do filme é brincadeira com a coadjuvante de ocasião que deseja se parecer com a supermodelo.
A mencionada retroalimentação entre ficção e documentário é ampliada pela fotografia que foge à estilização, se aproximando de um visual “lavado”, o que permite melhor integração com os demais suportes. Yermén lança mão do audiovisual para traduzir, com toques de lirismo, sua visão particular de um mundo tendente a lhe ser hostil. Camila José Donoso e Nicolás Videla guiam a personagem por caminhos narrativamente instigantes, desvelando essa personalidade admirável aos poucos, sobretudo por meio da valorização das verbalizações e dos gestos banais. O único senão mais saliente é a célere aceitação da arquitetura do templo outrora alvo de anseios de mudança, constatação que passa pela mediação das palavras e de rituais específicos. Naomi Campbel exibe um percurso marcado por ocorrências e circunstâncias inusitadas, tais como o emprego esotérico ao telefone e a ciência apaziguadora da complexidade da máxima “importante é estar bem consigo”.
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