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Sinopse

A trajetória que levou à ascensão de Napoleão Bonaparte ao posto de imperador da França foi marcada por um uma insaciável sede de poder. Militar aguerrido, ele também teve uma relação volátil e viciante com Josephine, seu amor.

Crítica

Há dois filmes em conflito, disputando as atenções do público, em Napoleão, a abordagem do veterano Ridley Scott sobre a vida e os feitos do imperador francês que entre o final do século XVIII e início do XIX conquistou mais da metade da Europa e acabou morrendo exilado em uma ilha, quase esquecido por tudo e todos – mas não a ponto de evitar constantes revisitas pela cultura pop. O cinema, em particular, o tem em alta conta. Nomes de peso, como Marlon Brando, Ian Holm (este em mais de uma ocasião), Mathieu Kassovitz e Rod Steiger já o viveram na tela grande, enquanto que cinebiografias, tal qual essa que agora se apresenta, somam mais de uma dezena, tendo tido início com o clássico Napoleão (1927), de Abel Gance – além de sua figura, enquanto personagem, ter participado como coadjuvante de obras icônicas, como O Conde de Monte Cristo (2002), Guerra e Paz (1956) ou até mesmo A Última Noite de Boris Grushenko (1975), entre outros. O problema, na atual abordagem, é a indecisão entre o íntimo e o público, entre o homem que apenas alguns tiveram acesso e o mito que entrou para a história. Indeciso com um pé lá e outro cá, o resultado alterna momentos de efusão com outros de profundo tédio, gerando algo irregular e, portanto, falível na maior parte de suas pretensões.

Isso dito tendo como entendimento de que este é um esforço que se revela capaz, enquanto obra audiovisual, de decepcionar aqueles que até ele chegarem movidos por altas expectativas e diversas comparações (principalmente com as várias à disposição – citadas acima – mais bem-sucedidas em seus retratos). O Napoleão Bonaparte de Ridley Scott é vivido por Joaquin Phoenix, que sem deixar o Coringa que lhe deu o Oscar para trás, cria uma figura entre a perturbada e a audaciosa, uma mistura do sanguinário Commodus de Gladiador (2000) – primeiro trabalho do dois, ator e diretor, juntos – com o inseguro Theodore de Ela (2013), o introspectivo homem que acaba se apaixonando por uma voz de inteligência artificial. O general que dessa vez ocupa o centro das atenções não é alguém prestes a conquistar o mundo, e sim, pelo contrário, o dono de tudo, certo do que irá fazer a seguir e que age como tal sem hesitações, ainda que a maior parte do trabalho – ou seja, as estratégias e batalhas – ainda tenham que ser levadas a cabo. Como lidar com aquele que tudo pode e do seu potencial em nenhum momento chega a ter dúvidas?

Conferindo-lhe uma nova camada, é o caminho escolhido por Scott ao se apropriar do roteiro escrito por David Scarpa (com quem havia trabalhado antes no irregular Todo o Dinheiro do Mundo, 2017). E quem carrega essa missão nas costas é Vanessa Kirby, escalada para dar vida àquela que teria sido o maior amor do protagonista: Josephine, sua esposa, aqui vista numa composição rasa, sempre a partir dele, sem nunca olhe oferecer um momento de respiro. Deliberadamente deixando de fora o envolvimento romântico prévio entre Napoleão e Desirée (que chegou a ganhar um filme para chamar de seu, justamente batizado de Desirée: O Amor de Napoleão, 1954, com Jean Simmons no papel principal), a mulher que irá mexer com o coração (e com a cabeça) do conquistador se mostra fria a calculista desde o começo, não hesitando em usar um dos filhos para do célebre homem se aproximar e aproveitando-se do relacionamento não para dar vazão a uma angústia sexual, mas para colocar fim a uma condição social que lhe perturbava. Ele, se mostrando inapto a galanteios mais elaborados, encontra nela a necessidade e urgência que buscava. Assim, um vê no outro a solução de um problema inexistente, mas, ainda assim, capaz de provocar embaraço. Não há paixão. Mas essa, de um modo ou de outro, termina por florescer, mesmo que pendendo com maior força por um dos lados.

O descompromisso histórico dessa abordagem fica evidente desde a primeira cena, que mostra Napoleão na audiência, em praça pública, observando como tantos outros que ali se encontravam a decapitação de Maria Antonieta. É o fim da monarquia – que ele próprio se encarregaria de recuperar – e o início da vontade do povo – algo que ele, também, trataria de abafar com suas aspirações cada vez mais internacionais e menos voltadas a sua terra natal. É sabido que, nessa data, ele se encontrava a quilômetros de distância, e com interesses bastante diversos, mas a opção de Scott em colocá-lo neste cenário contribui com o empenho do cineasta em substituir uma ideia que poderia ser profunda e passível de desdobramentos por uma busca pelo espetáculo, dotando cada quadro do maior número possível de informações de impacto. Nisso, Napoleão revela sua força: a fotografia de Dariusz Wolski (indicado ao Oscar por Relatos do Mundo, 2021) está comprometida em esmaecer nuances e almejar um imaginário de arrebatamento a todo custo, enquanto que a trilha sonora de Martin Phipps (indicado ao Emmy por The Crown, 2016-2023) ignora qualquer apelo à discrição ao perseguir o épico a todo custo. São opções que, se por um lado se mostram acertadas nas passagens mais antecipadas, por outro se confirmam claudicantes pela inabilidade percebida de proporcionar um mergulho na alma deste que nunca se contentou em ser apenas mais um na multidão.

Ridley Scott sempre foi um cineasta irregular, que ao longo de décadas alternou grandes acertos com tropeços facilmente esquecíveis. Desde Perdido em Marte (2015), há quase uma década, porém, que não entrega algo digno de nota. Napoleão teria, supostamente, as credenciais para mudar esse retrospecto, mas recebê-lo de braços abertos se mostra uma tarefa mais inglória do que se poderia esperar. Afinal, se o show está nos espaços abertos, há pouco a ser explorado no privado. Quem foi este homem na intimidade? O que lhe movia a ponto de levar exércitos consigo? Como Josephine, sem amá-lo desprovida de ressalvas, conseguia dominar seus sentimentos a ponto de afetar seu julgamento e decisões? Como ele lidava com o peso de cada novo território conquistado? Era mera ganância, ou haviam traumas empurrados para debaixo do tapete dos quais ele se esquivava? Estas são apenas algumas das muitas questões levantadas, mas nunca percorridas, neste filme eficaz em proporcionar o que dele se espera, sem ousar ou sequer assumir riscos diante do inesperado ou mesmo mais arriscado. Um Bonaparte acomodado, quem diria?

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.

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