Crítica
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Sinopse
Na primavera de 2019, em sua primeira viagem à Argélia, o cineasta Karim Aïnouz registra os protestos contra o quinto mandato do presidente Bouteflika. Ele escolhe como protagonista Nardjès A., jovem ativista de uma família com histórico de protestos políticos. A câmera acompanha um único dia na vida da garota, quando se prepara para uma grande manifestação.
Crítica
Os cinéfilos que conheçam o trabalho de Karim Aïnouz enquanto documentarista sabem que, mesmo quando lida com questões mais explicitamente políticas, a liberdade de invenção estética jamais se torna secundária para o diretor. Depois dos belos planos de espaços vazios e pipas voando em Aeroporto Central (2018), pairava a curiosidade para descobrir o que o esteta faria desta vez, com a captação em telefones celulares comuns, no meio da revolução da juventude argelina. Como criar tamanho senso de composição em meio a uma multidão aos gritos? Como desenvolver metáforas visuais num momento de urgência, em língua estrangeira? Aïnouz elegeu uma protagonista, acompanhando deste modo um ponto de vista capaz de representar os demais. Nardjès A., jovem militante, grita palavras de ordem e carrega faixas. O filme a acompanha durante um único dia, de manhã até o fim da noite.
Existe um valor simbólico notável na escolha de Nardjès A. Primeiro, trata-se de uma jovem garota, e não de um garoto, o que valoriza o surgimento de vozes pouco representadas nos protestos de gerações anteriores. Segundo, ela não representa a liderança de um movimento, ou seja, não se trata de um caso exemplar visando sugerir ao espectador o caminho a seguir. A personagem não foi escolhida pelo caráter de idealização, e sim pela universalidade – ela representa uma figura equivalente às demais. Terceiro, Nardjès provém de uma família de ativistas, sendo filha de protestantes e neta de mártires, razão pela qual compreende tanto a preocupação dos familiares quanto a necessidade de continuar lutando. Através dela, o cineasta investiga uma linhagem de pensamentos progressistas, que não nasce de uma “moda” ou conscientização súbita da nova geração. Através da família de sua protagonista, é possível que Aïnouz enxergue um pouco de sua própria, ele mesmo de origem argelina. Não por acaso, a obra é dedicada ao avô.
Dispondo de menor controle sobre a cena in loco, o diretor manipula suas imagens com especial atenção na pós-produção. Multidões clamando contra o quinto mandato do presidente são tingidas por filtros vermelhos, amarelos, verdes. Dentro de um túnel, os ruídos se interrompem pela montagem. Canções entoadas tanto pelos jovens quanto adicionadas posteriormente nos lembram que a política é acompanhada pele arte (Nardjès também integra uma trupe amadora de teatro), através de um caráter que garota descreve como protesto “tipicamente argelino”, ou seja, com sorrisos, canto, alegria. Eles temem por suas vidas, mas se encorajam, se abraçam. Existe um senso de fraternidade que ultrapassa o afrontamento simbólico ao poder - ou talvez o afeto constitua uma forma de afrontamento em si. Além disso, os letreiros iniciais ostentam um verdadeiro trabalho de design: letras de várias fontes, multicoloridas e remetendo aos grafites de rua, fornecem um contexto rápido dos protestos na Argélia. Ao invés das tradicionais letras brancas sobre fundo preto, em sinal de sobriedade e respeito, o diretor busca resgatar o furor e a estética da juventude.
A preocupação em retratar a coletividade através de Nardjès se traduz no uso quase literal do scope enquanto possibilidade de abrir ainda mais a imagem, incluir o máximo de pessoas possível. Quando a captação de celular não está colada ao rosto de seus personagens (de maneira tão próxima que beira o asfixiante), a imagem se abre o máximo possível para oferecer a dimensão dos protestos. Cenas aéreas se combinam com imagens de algum ponto alto (provavelmente alguma sacada de prédio), buscando enquadrar pessoas penduradas em balcões ou postas sobre os ombros umas das outras. Sem precisar de uma única entrevista frontal à câmera, nem uma narração externa e “oficial” da direção – apenas Nardjès A. narra seu dia, com suas palavras – o discurso transparece seu apoio ao grupo ao se posicionar como um jovem a mais. Para captar aquelas imagens, a câmera estava ao lado deles, marchando junto dos protestantes. Contrariamente a tantos filmes que estudam movimentos sociais de um ponto de vista distanciado, este documentário pretende imergir no tempo presente e apreender a estética das ações, além de seu conteúdo reivindicatório.
Devido à decisão de captar um único dia, apenas pelo olhar da protagonista, o diretor se priva de fornecer maiores informações sobre a situação política no país. Esses dados fazem falta: só se compreende por completo a fúria de um povo a partir do momento em que se descobre contra o quê exatamente estão lutando. As pessoas falam de um governo corrupto, um homem de vocações ditatoriais, e não se duvida da veracidade de suas falas. No entanto, acusações de corrupção e de “destruir o país” se tornaram moeda retórica no jogo político, sendo atribuída a qualquer grupo opositor. Faltaria dissecar as especificidades do movimento: que medidas o presidente tomou no que diz respeito ao emprego, à cultura, à segurança, à saúde? Que laços efetuou, que discursos proferiu? Não seria possível introduzir estes elementos no filme, mesmo sem o uso das tradicionais imagens de arquivo? Os jovens não poderiam explicar, em suas palavras, o que os motiva a sair de casa toda sexta-feira há meses, ocupando as ruas do país inteiro e correndo o risco de prisão ou de agressões?
Nardjès A. termina por fornecer um painel belo, porém talvez incompleto. Ele funciona melhor como termômetro de uma sociedade em ebulição do que como retrato sociopolítico. Por mais vigorosa e receptiva que seja a protagonista – ela permite a câmera colada em seu rosto durante um dia inteiro, sem parecer incomodada com a presença durante ligações íntimas à família, por exemplo – Nardjès não dá conta de transmitir dentro deste recorte preciso os pormenores da revolução local. Resta uma força de vontade, um otimismo, que talvez tenham encantado o diretor cearense enquanto possibilidade de organização popular ausente no Brasil em crise. No entanto, seria interessante conhecer um pouco mais daquelas pessoas para além dos rostos expressivos que enchem a tela. Nem mesmo os amigos mais próximos de Nardjès ganham um aprofundamento de seus pontos de vista particulares. A aposta metonímica do cineasta se justifica, porém deixa a sensação de ter passado literalmente muito perto de retratar uma complexidade política ainda maior.
Filme visto no 70º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2020.
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