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Crítica


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Sinopse

Auto-cinebiografia do diretor Silvio Tendler, o filme é costurado por eventos que mostram os avanços e os retrocessos que inevitavelmente cercam a existência do artista.

Crítica

Silvio Tendler, frequentemente embrenhado nos caminhos da História, em Nas Asas da Pan Am fala da sua vasta trajetória, criando um documentário autobiográfico a fim de revelar-se. Para tanto, se lança numa escavação por arquivos pessoais e lembranças, num processo arqueológico em forma de filme. A estrutura é próxima do tradicional, principiando na rememoração dos verdes anos ou, melhor dizendo, no resgate do caminho dos avós migrantes europeus que evidentemente o precederam. É bonita a construção conduzida pela voz do próprio Tendler, mas também por palavras que ecoam nos timbres de outros narradores. Assim, ele se multiplica para falar de si, dos seus, transbordando saudosismo ao entremear dizeres sobre a molecagem infantil e as ilustrações fotográficas da dita, com uma vontade utópica de tornar permanente o impermanente. Ele também deslinda a importância primal da memória, desse fundamento do indivíduo sem o qual ele não estabelece identidade. Curiosa a entrevista com o neurocirurgião que fala também como ex-revolucionário.

A estrada delineada é cronológica. Dos anos da meninice, somos levados a compreender o processo formativo, quanto ao ideário político, desse sujeito que crê na possibilidade de um projeto socialista funcional. Tendler esbanja sinceridade e um despojamento – não frequentemente atrelado a uma natureza narcísica dos artistas – ao temperar o trânsito pela adolescência com a constatação de uma incapacidade aos estudos, um quase total desinteresse pelas coisas propagadas na sala de aula. É afetuoso o modo como ele se recorda dos pais, mas tem um sabor especial a descoberta de que tinha certa limitação ao enxergar ambos, uma ignorância diminuída após o contato com fotografias até ali desconhecidas. Ao encarar registros de viagens, compreendeu que as animosidades cotidianas, com as quais estava acostumado, não eram capazes de determinar totalmente do que era feito aquele vínculo. Em momentos como esse, Nas Asas da Pan Am deixa bastante visível, por meio de uma averiguação íntima, os vários processos desencadeados pelas imagens fixas ou em movimento.

Grande parte do filme é sobre o que conferiu a Silvio Tendler consciência política. Porém, ao articular viagens e estadas pelo Chile, por uma Paris em que foi parte do grupo impagável, ele incorre em repetições estilísticas que não acrescentam tanto. Diferentemente de instantes potentes, como a reminiscência do trabalho no litoral chileno, iluminado por suas lindas fotografias do proletariado assistido, as entrevistas de contornos mais convencionais se encarregam de enfraquecer o filme cinematograficamente. Ainda que as falas de Tendler, seja como testemunha ou questionador, carreguem elementos valiosos, por sua retórica informativa ou emocional, estabelecem quebras num ritmo sem elas melhor fruído. Nas Asas da Pan Am é efetivo, inclusive como inventário de alguém absolutamente atravessado e modificado pelo ambiente instável do mundo vasto e em constante convulsão, quando o cineasta deixa-se fragmentar em vozes distintas e nos fotogramas transmutados em retalhos a serem cerzidos. A segunda metade do conjunto deixa a desejar pelos dispositivos.

Talvez sem qualquer pretensão de fazer um grande filme sobre si, somente a de fazer um filme sobre si, Silvio Tendler deixa para o fim as suas homenagens às mulheres com as quais teve relacionamentos marcantes e aos cineastas que o ajudaram a formar-se. Embora essa organização blocada, disposta perto do encerramento, confira distinção aos dois grupos contemplados, a sensação prevalente é a de que interromper o fluxo parece um esquecimento a ser compensado. Quiçá tenha sido realmente essa a intenção, a de completar o filme com um “antes que me esqueça”. Entretanto, assim não é claramente manifestada, soando exatamente como aparte, um remendo. Nas Asas da Pan Am, a despeito desses pequenos desajeitos constantes na segunda parte, é fruto de um olhar afetuoso à própria trajetória, numa autocelebração substanciada pela competência de situar o homem dentro da História que lhe atravessa inexoravelmente. Silvio Tendler reverencia aquilo que lhe constitui como artista, sujeito e cidadão, entrelaçando todos esses componentes vitais de sua persona.

Filme visto online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2020.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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