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Crítica


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Sinopse

Hickson tem muitas dificuldades para pagar seus boletos no fim de cada mês. Se virando nos 30, como pode, ele acaba ocupando o espaço vago numa rádio evangélica. E ele vai descobrir que nem o céu pode ser um limite.

Crítica

Hickson (Marcelo Adnet) é um carioca suburbano que rala e sua em dois empregos para ajudar a pagar as contas de casa. Casado com a manicure interpretada por Letícia Lima, ele alimenta o sonho de trabalhar no rádio. Mas, esse desejo profissional é mais uma desculpa para empurra-lo rumo à emissora da igreja na qual congrega, e menos algo fundamental ao desenho de sua personalidade. Fato é que um equívoco tolo muda a sua vida: ele vai ao ar perto da meia-noite e sua interpretação de pastor cai imediatamente nas graças dos fiéis. Com as linhas lotadas de pessoas dispostas a doar dinheiro para alcançar milagres, a Igreja Internacional dos 12 Apóstolos cresce o olho sobre o novo e improvável talento que estagiava distribuindo correspondências no prédio. Nas Ondas da Fé é uma sátira sobre as igrejas neopentecostais, principalmente a respeito das estratégias puramente comerciais para capitalizar sobre a fé e o desespero alheio. O longa-metragem acompanha um homem comum galgando degraus rapidamente nesse negócio por se ajustar às engrenagens do seu funcionamento. A história é eficaz como retrato dessa estratégia de plantar culpa e pecado para colher milhões de reais. Até porque o personagem vivido por Marcelo Adnet se torna gradativamente um simples vetor desse desmascare com momentos inspirados e outros em que a crítica social parece meio cansada. Conspirações, reviravoltas, alianças e puxadas de tapete são ingredientes para criar o contexto.

O filme dirigido por Felipe Joffily utiliza a elevação meteórica do protagonista para revelar o que está por trás de alguns cultos neopentecostais. Hickson não é pastor, mas assim passa a ser tratado tão logo apresente resultados numéricos à rádio. A emissora não busca necessariamente evangelizar, mas arrecadar dinheiro das pessoas que acreditam num escambo com Deus para atingir os seus desejos e as suas necessidades. As conversas de Hickson com o diretor da rádio (interpretado por Otávio Müller) dão o tom dessa orientação mais mercadológica do que religiosa do veículo de comunicação. Na medida em que a trama avança, somos apresentados a uma fauna representativa dessa ganância impregnada numa organização que deveria ser mais calcada na fé. Temos o pastor invejoso, aquele que planeja derrubar o novo queridinho da Igreja; o grande chefão, sujeito semelhante a um gângster de filme – e Tonico Pereira parece o bispo Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus –; há também os aproveitadores do conselho diretivo da Igreja. Fica muito claro que Hickson faz parte de uma organização praticamente criminosa que utiliza a vulnerabilidade alheia como subterfúgio para prosperar nos negócios. Dito tudo isso, o calcanhar de Aquiles do filme é inconsistência desse recorte utilizado como exemplo. O personagem principal é eximido de uma culpa/dúvida que nem demonstra sentir. Basta ver que os holofotes sobre o sujeito são diminuídos em prol da atenção ao meio ambiente.

Nas Ondas da Fé não toma caminhos semelhantes aos de Divino Amor (2019), filme de Gabriel Mascaro que tem mais jeitão de distopia evangélica com toques fundamentalistas. A comédia de Felipe Joffily se detém sobre um núcleo bastante restrito de personagens e circunstâncias, ainda que sugira a existência de um ecossistema neopentecostal em que pastores trocam de congregação como executivos mudam de escritório em busca de carreiras vantajosas. O filme se sai bem ao brincar com essa estrutura, ainda que sua capacidade corrosiva seja prejudicada pela ausência de nuances e a insistência numa restrição dos personagens ao cumprimento de determinados papeis. Por exemplo, o antagonista é somente um rival do protagonista e nada mais. Até Hickson é sabotado por essa falta de curiosidade do roteiro assinado por Lusa Silvestre nas questões humanas. No começo, Hickson fala de fracassos infantis que o perseguiram na vida adulta, o que ensaia um interesse nele. Mas, ao privilegiar o diagnóstico escrachado de uma atividade religiosa convertida em negócio lucrativo, o filme perde quase completamente a curiosidade sobre esse homem suburbano que agarra com unhas e dentes as oportunidades. Quais são as motivações do sujeito? O que ele sente em meio a isso de se tornar celebridade? A trama não abre qualquer espaço para o entendimento das responsabilidades de Hickson. Ele tem consciência de ser um charlatão? Até que ponto isso o incomoda/aflige? Não saberemos.

Uma das estratégias mais eficazes da sátira é o exagero. No entanto, é difícil competir com a realidade em alguns aspectos. Em Nas Ondas da Fé, certos coadjuvantes são transformados propositalmente em caricaturas, há episódios oportunos para esgarçar a realidade (a visita à cadeia é um deles) e a escola de pastores é uma sacada funcional dentro desse excesso que visa o efeito cômico. Já em outros pontos do filme, a realidade se impõe como naturalmente descomedida, vide as decorações dos templos, a saída de malotes estufados de dinheiro das instalações da Igreja e a gradativa assimilação de técnicas de entretenimento para engajar uma plateia desesperada por algo que mude a sua vida. Felipe não demonstra perícia ao costurar elementos propositalmente exagerados (em relação à realidade) e essas circunstâncias verossímeis justamente por serem exageradas. E é incômoda a falta de consistência nas interações. Os antigos amigos de Hickcson sequer questionam sua guinada ao estrelato gospel, reaparecendo somente para louvar a novidade. A esposa se revela uma mulher ambiciosa, o que desabona o “pé no chão” que a definia. Já Hickson não tem culpa, arrependimento ou dilemas éticos. As orações pedindo intervenção divina são indícios de sua fé. Contudo, simplesmente não sabemos qual a sua opinião diante da farsa assumida tranquilamente como ganha-pão legítimo. O filme achincalha o cenário, mas em nenhum grau compromete o seu protagonista.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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