float(0) float(0) int(0)

Crítica


7

Leitores


Onde Assistir

Sinopse

Enquanto o Natal se aproxima, o campus de uma universidade fica cada vez mais vazio, com muitos estudantes voltando para as suas famílias. No entanto, algumas garotas de uma irmandade começam a ser assassinadas, uma a uma, por uma figura misteriosa. Mas o matador não suspeitava da capacidade destas alunas em se unirem em busca de vingança.

Crítica

É preciso ter muita coragem para fazer um filme de terror como Natal Sangrento (2019), do tipo que se apropria das regras machistas do slasher para oferecer um terror ostensivamente feminista. Este subgênero costuma ser um dos mais misóginos, tendo criado dezenas de grandes vilões dilacerando os corpos de mocinhas peitudas e vitimizadas. Centenas de estudos aprofundados de teóricos do audiovisual foram destinados ao caráter fetichista do slasher, pela óbvia metáfora das facas e machados representando o estupro de jovens homens heterossexuais contra suas vítimas. Geralmente, os homens são maliciosos e espertos, correndo trás de garotas sexualizadas e burras. Ainda que os malvados sejam punidos na conclusão destes projetos, eles retornam nas sequências, ou estimulam colegas homens a seguirem seus passos (vide a saga Pânico, 1996 – 2011, e mesmo os clássicos Halloween: A Noite do Terror, 1978, e Sexta-Feira 13, 1980). A intenção da diretora Sophia Takal, corroteirista junto de April Wolfe, consiste em subverter de modo radical os pressupostos do gênero.

O projeto se transforma num dos filmes de terror mais adaptados à nova linguagem da inclusão social. As protagonistas denunciam o machismo dos professores, a falta de pessoas negras entre os cargos de chefia da universidade, a ausência de alunos transexuais. Ao mesmo tempo, aceitam a homossexualidade, falam sem tabus sobre o prazer feminino, entregam vibradores umas às outras e discutem sobre coletores menstruais. Elas vestem camisetas contra o patriarcado, criticam os bustos erguidos à honra masculina e discorrem sobre literatura feminista. Curiosamente, o caráter contemporâneo da discussão social se insere dentro de dois contextos bastante regrados: primeiro, o das universidades de elite, com suas fraternidades, seus trotes, suas panelinhas e brigas de corredor, e segundo, a época do Natal, quando se retomam às tradições familiares (patriarcais, claro), e quando se espera certo espírito de conciliação entre as diferenças. As criadoras – o filme é escrito, dirigido e estrelado por mulheres – fazem questão de revirar estas convenções pelo avesso, buscando o enfrentamento ao invés das pazes entre gêneros. Takal quer ver as fraternidades literalmente pegando fogo, deixando o protagonismo às mulheres fortes.

Talvez por isso Natal Sangrento tenha sido recebido de maneira tão colérica pelo público majoritário. A diretora ousa colocar suas protagonistas numa suposta dança sexy (quase idêntica à de Meninas Malvadas, 2004), cujas letras da música denunciam um aluno estuprador. Ao invés de sofrerem em silêncio com os ataques masculinos, as jovens respondem às armas penetrantes com outras armas penetrantes. Os principais argumentos utilizados para desprezar o movimento feminista são desmontados um por um: para quem diz que “a menina só é atacada quando provoca”, sublinha-se que as mulheres são atacadas em qualquer contexto, e que os garotos se vitimizam para se isentarem de responsabilidade; para quem diz que “homem é assim mesmo” (de acordo com um diálogo, “Boys will be boys”), as meninas recusam aceitar a agressão masculina como algo natural e inevitável; para quem argumenta que “nem todo homem é um estuprador”, o roteiro trata de mostrar que todos os homens são, sim, estupradores em potencial e carregam boa dose de machismo em si, que tenham consciência disso ou não. Takal critica ainda as mulheres que não aderem ao discurso feminista e aquelas que reproduzem frases de efeito sem praticarem estes ideais no dia a dia. A protagonista, Riley (Imogen Poots), é uma garota pouco politizada que compreenderá a importância da luta feminista à medida que as mortes se multiplicam no campus. Sobram farpas para todos os lados, sem qualquer forma de concessão ao gosto majoritário, nem algum romance para acalmar as tensões. Quando os conflitos se acirram, a batalha ocorrerá literalmente entre homens e mulheres.

A premissa é tão interessante que talvez merecesse uma subversão igualmente radical na estética. Neste quesito, Takal mostra-se acanhada, ou pelo menos pouco inventiva. Ainda presenciamos os tradicionais efeitos sonoros antecipando sustos, os vilões que desaparecem misteriosamente quando a protagonista se vira para trás, os objetos convenientemente esquecidos num cômodo, as meninas que se afastam umas das outras apenas para virarem alvos mais fáceis do agressor. Talvez estes clichês estejam sendo parodiados, mas a intensidade dos recursos não é tão clara que se permita falar sem dúvida numa leitura em segundo grau. Seria possível sustentar que a cineasta leva a sério estas ferramentas, reproduzindo uma linguagem tipicamente masculina. Pelo menos, a “seita” dos homens, ainda que toscamente orquestrada, sublinha o aspecto de paródia das bruxas femininas – cabendo aos bruxos homens o mesmo final que se reservava às mulheres desafiadoras da Idade Média. Takal poderia apostar numa linguagem mais trash, mais sangrenta, ou numa linguagem menos convencional. Mesmo assim, aposta num filme de terror B do tipo que assume seus prazeres fáceis.

A indefinição conceitual se aprofunda no clímax, ou seja, o confronto entre agressor e vítimas. Nesta hora, a direção transparece a inexperiência em cenas de ação e luta, oferecendo um enfrentamento mal iluminado, fotografado e montado, exagerando nas câmeras lentas e transformando o confronto numa bagunça difícil de compreender. Natal Sangrento se torna um filme muito mais interessante politicamente do que esteticamente. Ao menos, a conclusão sustenta seu discurso progressista com tal orgulho raro dentro do filme de terror – é comum produções ousadas se domesticarem rumo à conclusão para agradarem a um grupo maior de espectadores. Pode-se sugerir que as mortes rápidas, e ocultadas pela montagem, correspondam ao desejo de Takal em retirar o prazer do assassinato, ou seja, despir o slasher do fetiche do corpo penetrado e das mulheres gritando. De qualquer modo, o resultado é mais lento e contemplativo do que a média em termos narrativos, e muito mais raivoso enquanto discurso. Em paralelo com a vingança das meninas contra o macho agressor, encontra-se uma vingança do próprio cinema feminino contra tantas produções feitas por homens e para homens. Este é um rape and revenge film em mais de um sentido, vingando-se da dominação masculina na narrativa e dentro da própria história do cinema.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *