Crítica


6

Leitores


2 votos 9

Onde Assistir

Sinopse

Segunda Guerra Mundial. Um longo inverno está prestes a começar na União Soviética ocupada. István Semetka faz parte de uma unidade especial húngara encarregada de viajar de aldeia em aldeia à procura de grupos guerrilheiros. Certo dia, enquanto se dirige a uma aldeia remota, a companhia é atingida pelo fogo inimigo e seu comandante é morto. Como oficial de mais alta patente, Semetka deve assumir.

Crítica

Natural Light (2020) representa o que se convencionou chamar de “cinema de qualidade”. A coprodução entre Hungria, Letônia, França e Alemanha apresenta uma reconstrução rigorosa da Segunda Guerra Mundial: os figurinos, acessórios, objetos e cenários são impecavelmente detalhados. Há dezenas de casebres, florestas, pântanos e lagos pelos quais atravessam os soldados. Como o título poderia sugerir, a direção de fotografia é impressionante: Támás Dobos trabalha com inúmeras frestas de luz entrando pela janela e banhando parte do corpo de húngaros sofredores. A chegada de soldados caminhando silenciosamente na floresta densa, a irrupção nos espaços domésticos e sobretudo a descoberta de um fugitivo escondido na lama proporcionam momentos de grande impacto estético. Qualquer frame aleatório em que se interrompa a projeção oferecerá alguma fotografia de efeito estonteante. Os criadores se preocupam não apenas com os recortes da luz, mas também com as cores: poucas produções pensam de maneira tão expressiva os encontros entre marrom, verde, azul e suas combinações cromáticas durante uma batalha.

Além da suntuosa fotografia, o diretor estreante Dénes Nagy se concentra em outra virtude comum ao cinema de festivais e de premiações: o “fazer verdade”, ou seja, o oferecimento de cenas impossíveis de falsear, ou que apresentariam grande dificuldade em fazê-lo. Há carcaças de animais gigantes flutuando no rio, dezenas de cavalos atolando na lama durante uma travessia, incêndios gigantescos, sequências com inúmeros figurantes, incluindo muitos idosos e crianças. Reforça-se o “valor de produção”, o uso ostensivo de locações e recursos de produção, valorizando a amplitude da natureza, as dimensões do cenário e a quantidade de cavalos, estradas, figurantes etc. Curiosamente, esta estrutura grandiloquente se presta à jornada de um herói tímido, de poucas palavras, que acata ordens pacificamente durante a guerra, manifestando raros dilemas morais. Ferenc Szabó, ótimo ator, possui um rosto marcado, angulado, assim como os demais nomes do elenco, provavelmente escolhidos em função de sua quantidade de rugas, vincos, protuberâncias e marcas de expressão. Mesmo na escolha humana, percebe-se a evidente preocupação estética.

O banquete de composições quase nos faz esquecer de que, por trás desta demonstração de excelência técnica e criativa, existem milhares de pessoas morrendo de fome, tortura, tiros, explosões etc. Surge uma questão ética fundamental diante do embelezamento da miséria: temos o direito de provocar o deleite do espectador a partir do sofrimento alheio? Semetka, nosso protagonista de poucas qualidades, não determina os rumos da história, sendo condicionado por eles. O militar apenas reage, consente, caminha em grupo e executa ordens de superiores. Percebe-se na bela atuação de Szabó a dor de perseguir algumas pessoas e a surpresa diante dos atos bárbaros de seus colegas. No entanto, ele permanece resignado à sua função. Praticamente nenhum camponês possui nome ou voz dentro deste contexto: eles constituem uma coletividade indistinta e intercambiável, com feições semelhantes. As vítimas da Segunda Guerra Mundial jamais assumem o protagonismo, nem contam a sua versão: elas se limitam à posição de vítimas, ou ainda mártires da História. Se sobrevivem ou sucumbem, se fogem à perseguição ou morrem fuziladas, pouco importa à narrativa imperturbável. Nagy condena a barbárie das execuções, mas não a ponto de desenvolver qualquer subjetividade no povo massacrado.

Enquanto exemplar do gênero de guerra, Natural Light surpreende pela melancolia: apesar dos meios consideráveis, o filme jamais envereda pelo prazer do espetáculo. As cenas de combate são raras e curtas, visto que o roteiro privilegia as esperas e caminhadas pela floresta. Constrói-se um lamento do desperdício humano – vide as metáforas do leite derramado, das frutas abandonadas pelo caminho, do balde d’água que jamais sacia a sede dos familiares. O cineasta observa este cenário com incompreensão ao invés de raiva, como se questionasse “Para quê fizemos tudo isso?”. O filme enxerga vítimas de ambos os lados, seja o povo massacrado, seja os militares que executam atos dos quais discordam. A suposta equivalência de pesares constitui um ponto questionável: ao eleger Semetka enquanto verdadeiro observador do conflito, sofrendo tanto quanto as suas vítimas, o projeto estabelece sua lei simbólica da Anistia, sugerindo que o período deixou cicatrizes em qualquer pessoa envolvida. Talvez os familiares de pessoas mortas na Segunda Guerra Mundial enxerguem de maneira menos clemente o papel destes soldados carinhosos, que se abraçam, dizem palavras gentis e afastam o colega do palco de um massacre para poupar sua sensibilidade.

Ao final, o drama tem menos a dizer sobre a guerra do que sobre o cinema. Enquanto representação dos combates específicos das tropas húngaras em territórios ocupados, esclarece poucos elementos históricos, políticos ou sociais. A disposição de homens fardados atirando, queimando, torturando e estuprando camponeses indefesos poderia corresponder a tantos outros combates, em períodos muito distintos, infelizmente. No entanto, esta forma de cinema rebuscado, que coloca a virtude da imagem acima da responsabilidade de construção humana, confronta o espectador aos limites de uma beleza “absoluta”. Imagens podem ser belas em si, independentemente do que retratam, e do contexto em que estão inseridas? A fresta de luz possui mesmo valor caso banhe o corpo de uma agricultora sofrida, um oficial nazista ou um cadáver em putrefação? Não há dúvidas de que este projeto servirá como excelente cartão de visitas ao cineasta – de fato, Nagy demonstra notável capacidade de criação. No entanto, o deslumbramento obtido às custas da dor de anônimos (que permanecem anônimos após quase duas horas de projeção) merece questionamento. Precisamos observar com senso crítico estes cadáveres empilhados tão belamente pelas ruas.

Filme visto online no 71º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em março de 2021.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *