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Sinopse

Um estrangulador em série aterroriza uma cidade. Um grupo de cidadãos começa a vigiar as ruas à noite. Entre eles, um contador covarde e atrapalhado, que acaba sendo considerado um dos principais suspeitos. Enquanto isso, um casal de artistas circenses está em crise.

Crítica

Woody Allen faz tempo que não recorre a este artifício de linguagem, mas no início de sua carreira era mais comum se deparar com experimentações em preto-e-branco, como Manhattan (1979) e Zelig (1983). Porém nenhuma destas incursões foi tão radical quanto a presenciada em Neblina e Sombras, um filme em que a ambientação é tão ou mais importante do que o enredo em si. Esse, numa análise mais apurada, é quase como uma desculpa para uma tese a ser defendida. Ideia essa que se torna explícita através da belíssima fotografia, que não só remete a audiência a uma outra época e formato, como também tem importância decisiva no discurso que está sendo desenvolvido. Mais do que uma homenagem, este é um trabalho que depende tanto do repertório de sua audiência quanto da sensibilidade destes para ser totalmente compreendido. O que não permite discussão, no entanto, é seu valor enquanto obra de arte, um diferencial que se apresenta inegável desde a sua gênese.

Um assassino está à espreita, vagando pelas ruas em busca de sua próxima vítima. Kleinman (Allen, no tipo de personagem que tornou clássico pela reincidência em sua filmografia) é um contador covarde e puxa-saco que é acordado no meio da noite por amigos e vizinhos, chamado a ajudá-los a perseguir o matador. Desde o primeiro susto ele deixa claro que não quer sair de casa, muito menos enfrentar uma ameaça que desconhece e teme. Porém, e é isso que o impulsiona a sair no encalço dos demais, é maior o receio que tem de ser acusado de não fazer nada. E assim começa uma trama episódica durante essa longa jornada noite adentro. Há o encontro com o médico, a tentativa de refúgio com a ex-noiva, a mãe solteira com um filho nos braços sem ter o que comer, o patrão em atividade ilícita e até um concorrente de trabalho que aproveita o breve momento dos dois juntos para se gabar de uma promoção recém conquistada. Mas há mais.

Do outro lado da cidade, os artistas do circo estão em choque com a falta de interesse do público. O palhaço não consegue fazer ninguém rir, o mágico prefere afogar as mágoas no fundo de uma garrafa e a dançarina, casada com o homem mais forte, é a única que parece se divertir despreocupadamente. E será por causa de uma atividade extraconjugal que a engolidora de espadas (Mia Farrow) decidirá fazer suas malas e ir embora, incorrendo nas ruas abandonadas em busca de um abrigo. Ainda que vá parar no bordel amparada por prostitutas de bom coração e jovens estudantes com os bolsos cheios de dinheiro, , ela não permanecerá ali por muito tempo. Ainda que os caminhos dela e de Kleinman se cruzem em algum momento, a troca possível entre os dois se dará em um nível além do mero interesse romântico. Esse não é um filme sobre sentimentos imediatos, afinal de contas.

A fantasia em contraste com a realidade está presente a todo instante de Neblina e Sombras. Talvez justamente por isso a escolha por um visual em tons de cinza seja o mais adequado, pois assim nunca se sabe o que é de fato concreto ou fruto de alucinações. À noite, como o próprio protagonista diz a certo momento, a cidade parece ser um ambiente livre de leis e sentimentos, um lugar onde tudo é possível, sem arrependimentos ou segundas intenções. Por este mesmo motivo, o desfile de astros reunidos no elenco – nomes que vão das oscarizadas Kathy Bates e Jodie Foster aos inesperados Lily Tomlin, John Cusack, John Malkovich e Madonna, passando pelos iniciantes (na época) John C. Reilly e William H. Macy, entre outros – acaba contribuindo com a curiosidade geral, cada um se impondo como uma peça de um quebra-cabeça muito maior, em que cada detalhe pode fazer diferença.

Baseado em uma peça escrita por Allen chamada ‘Morte’, Neblina e Sombras guarda o mérito de ter sido filmado no maior cenário já construído em um estúdio em Nova York. Orçado em US$ 14 milhões, faturou nas bilheterias cerca de um quinto deste valor, tendo sido responsável pela quebra do estúdio Orion Pictures. Uma responsabilidade grande demais para um filme que não merecia tamanha pressão. Concebido como uma reverência ao cinema expressionista alemão do início do século XX, em especial aos títulos de mestres como Fritz Lang e F.W. Murnau, é um longa que alterna com igual segurança passagens de humor – os bons diálogos característico do autor – com sequências de muito suspense – cada aparição do serial killer, por exemplo. Mas mais ou menos como aconteceria com Assassinato em Gosford Park (2001) uma década depois, o que menos importa aqui são os atos e os porquês que os motivam, mas, sim, quem são e o que querem as pessoas envolvidas nessa aura de medo de conspiração. O esforço de enxergar através da fumaça pode exigir um alto preço, mas como veremos no final, a recompensa está em casa um.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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